Arquivo pretensiosinho

sábado, 5 de janeiro de 2013

A ilha de Upaunã


Dizem que as ilhas são como os seres humanos. As penínsulas, então, seriam os membros, e as enseadas, os troncos. Uma ilha ao redor de duas montanhas é uma moça que se bronzeia estirada na areia. Uma ilha escarpada é um rapaz que se senta, agarra as pernas e observa o balanço dos barcos e das moças. As ilhas têm epidermes – mas feitas de areia – que dividem seu interior dos mares e do mundo. E o que mais nos assemelha a ilhas são as grutas e as cachoeiras, a vegetação e as rochas que preenchem nossos interiores. Muitos homens são perigosos, como o capim de lâminas afiadas que dilaceram. Muitas crianças são plácidas e felizes como as águas do rio, escolhendo e organizando o rumo que tomam pelas pedras, e correndo e correndo. As veredas que os animais abrem pela paisagem são as veias, pulsando.

Para que nossa ilha seja mais humana que a metáfora, só lhe falta uma coisa: um povoado. E numa das casinhas de tapera dessa ilha há um menino. E todos os homens, mulheres, velhos e crianças, que moram nessa ilha são parentes desse menino. Um é tio, outro é tio-avô, a avó fora enterrada logo ali, a prima mora duas casas pra lá, os irmãos se multiplicam,  a mãe e o pai se entreolham, então passam o resto da noite sem se falar, porque tudo que havia de dizer já foi dito. Enfim, nossa ilha é um ser humano, habitado por um menino. E o menino e toda sua gente vive de pescar memórias, no mar e nos rios. Eles vivem de pegar bichos com as mãos, vivem de beber água da montanha. Mas nosso ser humano não seria uma ilha se não se sentisse, assim, isolado. E o menino brincava com a maria-farinha enquanto caía a tarde, e o sol se apagava no horizonte sem ondas, e o vento não uivava pra não acordar os macacos-prego, que já andavam sonolentos nas copas. A maria-farinha era engraçada porque andava de lado, e sua pinçazinha minúscula pinçava o ar como se ameaçasse chamar a mãe, maria-farona. Mas o menino não sorria. Isolado na ilha, ele queria receber alguma visita inesperada, queria que algum barco ancorasse ali perto e os marujos viessem lhe contar histórias e elogiar o pirão delicioso que é especialidade de sua mãe. E o sol já dormia e o menino também foi dormir, sem ouvir o vento uivar.

E para que nosso menino seja um menino de verdade, ele precisa de um nome. Upaunã, era assim que lhe chamavam seus parentes. E quando era pequeno, seu avô lhe sentava em sua perna, balançava seu corpinho e dizia “Upa-upa! Unã”. Foi assim que ele sonhou aquela noite. E sonhou também que, enquanto seu avô lhe fazia cócegas na barriga, um menino mais velho veio correndo com a notícia de que um barco tinha ancorado na enseada do tronco. E sonhou que foi quicando e estralando até a enseada e, quando chegou lá, descobriu que não era um barco qualquer, era o barco de um circo itinerante. E do barco maior foram içados elefantes, malabaristas, cartomantes, palhaços, muitos palhaços e leões e trapezistas, e gente de toda a cor, e cor de todo o tom, e tom de música e instrumento de todo tamanho. Tinha até um elefante trompetista. E Upaunã adorou aquele movimento todo, e quis ajudar os carregadores bigodudos, e como eles não o autorizaram, ele se dispôs a autorizar a si mesmo a descarregar os veículos engraçados dos palhaços narigudos. E passou a manhã do sonho entre os malabaristas, à tarde ouviu histórias dos trapezistas, que tinham asas de gaivota, e à noite contou piadas de maria-farinha aos palhaços, que se esborrachavam no chão de andar de lado e rir. E desfilou no lombo do cavalo, e os treinadores de cavalo diziam “Upa-upa! Unã”. Mas para que o sonho seja mais onírico, alguns bichos tinham que ser misturados. E o circo trouxe elefões, leocacos, araricos, jumengueijos, focaletas, peixerontes, e revoadas inteiras de abelhotas. Para Upaunã, até Noé teria invejado aquela fauna. E sua ilha tinha virado a ilha mais bela de todas, cheia de gentes e bichos e apetrechos coloridos e sonoros.

Então, Upaunã acordou. E foi ver o mar antes do café da manhã. E viu que havia milhares de barcos chegando a sua ilha. Mas não viu nenhuma cor. E não ouviu nenhum som interessante, só o mar que arrebentava na praia de tanto em tanto, como se dissesse a ele que corresse pra não ser atropelado pelas lanchas em alta velocidade. E, à medida que os barcos se aproximavam, homens e mulheres desciam com malas pesadas, e das malas armavam pequenas casas portáteis, embaixo das árvores, e cortavam os galhos e espantavam os bichos, e jogavam um monte de cacarecos pela praia e pelo mato. Em cinco minutos, a ilha tinha um cheiro diferente, e não havia mais espaço pra correr pela praia, de tanta gente. E as pessoas não falavam com Upaunã, só pra lhe pedir água e comida. Que ele vendesse, que elas pagariam. Upaunã não conhecia o verbo vender, mas passou a conhecê-lo e a odiá-lo. E os malabaristas e os trapezistas eram loucos, e sujavam as sombras das árvores, e os bichos eram só cachorros que pareciam crianças e cachorros que pareciam mordomos, de todos os tamanhos e espécies, e defecavam pela areia. Upaunã tinha que andar com a cabeça baixa pra ver bem onde pisava. E, de repente, a cozinha da casa de seus pais estava abarrotada de desconhecidos comprando e comprando, e seu pai já não pescava mais peixe pra sua mãe fazer pirão, porque já não havia peixes pro pirão. E a água foi se acabando, e as folhas das árvores foram caindo enquanto os homens bebiam em garrafas de vidro. E o vidro também cortava os pés. E Upaunã tinha de abaixar a cabeça pra andar. Tinha uma festa pra alguém, e nosso menino não sabia pra quem, porque já não conhecia mais os habitantes de sua ilha, e nem eles mesmos se conheciam.

A ilha de Upaunã, como uma criança quando fica doente, logo ardeu em febre. E o sol demorava a se apagar no mar. E os ventos passaram a uivar sempre mais alto pra acordar quem estivesse dormindo. E as chuvas chegaram e arrancaram os telhados. E logo alguns domadores de cães se afogaram, e alguns trapezistas caíram de seus cipós nas pedras das cachoeiras. E os palhaços morriam de medo do escuro e já não podiam ver as marias-farinha, que choravam, ridículos. O sistema imunológico da ilha, então, foi acionado. Ao cabo de alguns dias, restou apenas a sujeira, porque os intrusos tinham ido embora. E Upaunã percebeu que seu avô havia morrido, e também percebeu que seus parentes todos falavam demais, como se quisessem ocultar nas palavras a vergonha dos pensamentos. Falava-se muito, mas nenhuma história era contada. Era como se aquela visita que Upaunã desejou tanto tivesse acabado com toda a memória de seu povo. Então o sol se apagou no mar, e Upaunã brincou com a maria-farinha sob a luz da lua. E gargalhou, e gargalhou, porque suas patinhas apressadas e suas pinças pequeninas lhe sussurravam uma história que ele já não sabia qual era e nem como escutá-la, mas que lhe dava cócegas na barriga.

Nenhum comentário:

Postar um comentário