Arquivo pretensiosinho

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Penélope

O crochê delicado
sob a fruteira da mesa,
amarelo manga, exala.

Cetins, feltros, xitas,
tiras e pedaços de linhas
coloridas espalhadas
pela colcha de fuxico.
Segredos do sofá.

“Meu amor, não vá
trabalhar...”

Não se diz adeus
em nosso ritual.
Não há ritos, nem risos.
Sorrisos amarelos,
solstícios, só isso,
às vezes um cisco...

É muito. Muito tempo
o presente em qualquer lugar,
menos lá, onde o tempo
descansa descalço.
Imunes às agulhas,
os olhos se acendem.

Viro as costas, sem lembrar
- não há ritos, ou risos,
só o caminho à frente,
que é voltar ao inverso.
Nos olhos – não vejo,
fagulhas.

Minha casa é um peito,
que trago comigo
enquanto o deixo.
Noutras poltronas,
sofás incômodos,
faço renda insuficiente.

Inextinguível aroma de lar
sela os botões na camisa...
O corpo fechado,
do umbigo ao pescoço.
Remoço o canto
das listras: bem-me-quer,
margaridas não têm espinhos.

“Vou-me agora...”
- amargo.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Poetas escolares

Na escola
há um poeta para cada aluno.
Mas intriga que os poetas escolares
sejam líquidos, gasosos, e sólidos voláteis.
Muito difícil é se dar com eles
enquanto poetam a musa Loira
nos banheiros inspirados.

No entanto, dispersos
(pela gramática, ou motivo nenhum,
que os inspetores condenam),
escorrem pelas frestas das portas,
escapam pelas janelas abertas,
e se firmam de sobressalto,
feito as pedras de amarelinha
numa baia lúdica de giz.

No recreio - Estátua!
Há poetas petrificados por toda parte.

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Primogenia

É por aí que andei,
quando andávamos juntos
- a lua ululando sobre o mar, pés descalços -
e o tempo não era o mesmo entre nós.
Eu? Tu? Quem veio primeiro?

A memória me trai,
como as ondas da praia do Tombo.
Não sei dizer se as pegadas eram minhas,
ou se os passos eram os seus...

Irmãos que somos, passado e futuro,
brincamos com o desnível das areias
na ampulheta:

ora eu me esvaio,
ora tu te escorres.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

a vida finda,
a morte funda.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Fluxo


É sexta-feira. Não que o dia da semana significasse algo de profundo - sequer superficial – para Olavo. Já há alguns meses sua folhinha com anúncios de material de construção recolhida de algum balcão de loja tinha tanta utilidade quanto os próprios anúncios. Olavo não precisava saber de lajes e treliças, não se importava com as datas. Para nós, ao contrário de Olavo, o dia da semana pode ser importante. Isso porque há dois dias, numa quarta-feira gorda (das mais obesas, porque feriado), ele passara o dia fazendo as malas.

Olavo, homem solitário, professor de Português, esteve desempregado e depressivo. Porém, de algum modo inconspícuo, ele encontrou determinação suficiente para arrumar suas coisas e partir. Naquela quarta-feira era feriado internacional, e Olavo, talvez ao se dar conta de que o mundo que não era o seu paralisava-se à maneira do seu, preferiu se manter aquém. Sacou a mala do bagageiro do guarda-roupa velho e começou a enchê-la desordenadamente com suas coisas.

Entre cochilar, fumar e dormir, Olavo levou três jornadas fazendo os preparativos. De suas roupas, poucas lhe agradavam. Os cintos e sapatos lhe faziam lembrar o emprego e a dignidade perdidos e Olavo também bebia. Os documentos, os livros, os porta-retratos e umas bugigangas ganhadas de presente, de tudo Olavo escolhia isto ou aquilo, sem algum critério e enfiava como podia em sua mala e numa mochila puída que estava guardada dentro dela. Na tarde de sexta lhe pareceu que a bagagem estava pronta, indiferente àquele sentimento dos viajantes que, ao partir, sempre acreditam ter deixado algo de valioso pra trás, sem saber bem o quê.

É outono e os dias ficam menores. Ao cair repentina a noite, Olavo fuma um cigarro enquanto se veste, equipa-se com as malas e sai. Não nos importa saber onde ele mora, nem pra onde ele vai e, ao que parece, para Olavo essas são também informações desnecessárias. Ele simplesmente sai e caminha na direção de um ponto de ônibus. Depois do ônibus, quem sabe não tome um trem, depois outro ônibus, estrada a pé, carona, carroça, lombo de animal, passagem de moto, barco ou canoa. Entre o portão de sua casa e o ponto, Olavo não murmura nada, não meneia a cabeça, não sorri, nem enruga a face, ele não repara no trânsito de carros que se atropelam na rua a seu lado. Sua única expressão, se é que podemos assim chamá-la, é de ocupação, principalmente quando levanta com as duas mãos a mala, que não passa de outra forma pelos degraus da calçada.

Um infinito ínfimo depois, ele está no ponto de ônibus. Muitos pedestres estão parados por ali, esperando o meio de transporte que os carregará a seus lares. Do modo como olha a seu redor, poderíamos até dizer que Olavo se identifica com algumas dessas pessoas. Mas é com certeza que afirmamos que alguns ali se colocaram na pele de Olavo. Ao vê-lo com as malas, Rogério sentiu inveja por não poder viajar ele também, Cleonice imaginou que o homem teria que pedir ao motorista que abrisse a porta dos fundos pra ele carregar as malas no ônibus sem incomodar os outros passageiros - principalmente ela, Tereza pensou em seu namorado, que foi passar uma temporada no Chile e sabe-se lá o que estava fazendo naquele momento, Ademir se lembrou de seu emprego recente, fez força pra não imaginar-se sacando uma arma e exigindo de Olavo que lhe entregasse as malas. Na enxurrada de veículos, Dona Fábia reconhece seu ônibus que se aproxima, e se agita, andando pra frente e pra trás, levantando o pescoço, esperando confirmar a vista.

Enquanto os passageiros sinalizam ao ônibus e o motorista dá a seta pra passar da pista do meio pra pista da direita, Olavo se comove. Em poucos segundos, o ex-professor está pálido, e começa a pisar o chão alternadamente, pé direito, pé esquerdo, ansioso. Gotas de suor frio começam a escorrer das entradas calvas na testa. As mãos também suam, e ele aperta uma com a outra, pra desvencilhá-las depois. O homem se agita, olha em torno, mas não se fixa em nada. Olavo está desesperado. Tereza poderia ajudá-lo, se não estivesse ocupada em atravessar na frente das outras pessoas que fazem menção de embarcar pra chegar logo em casa. Olavo não se sente bem, mas é sexta-feira e sua saúde é problema seu, e ninguém na multidão o percebe.

Olavo decide sair dali. Ele ajeita a mochila, pega sua mala pela alça, e começa imediatamente a arrastá-la apressadamente. O ímpeto do homem lhe impede de planejar a rota a seguir, e ele faz automaticamente o caminho de retorno pra sua casa. Ao contrário da vinda, a ida é uma longa viagem. Olavo nunca tinha reparado que o ponto de ônibus mais próximo de sua casa ficava tão longe. As calçadas irregulares parecem Andes a transpor com aquela mala pesada, os semáforos se assemelham a ampulhetas cuja areia está umedecida, as ruas mais largas, e os veículos como projéteis sugados por um vácuo do além. O peso não ajuda Olavo, e ele decide se desvencilhar da mala maior, deixando-a sob um abrigo de botijões de gás de uma empresa, que estava aberto por descuido. Olavo sua, se contorce, caminha como um louco, tromba na gente que passa, não sabe onde colocar as mãos. Não há nenhum bar entre o ponto de ônibus e a casa de Olavo.

Em geral, ao se depararem com um personagem masculino que passa por tantas agruras ao se deslocar do ponto a ao ponto b, leitores com um repertório tão específico como o nosso invariavelmente o comparam a Odisseu. No entanto, Olavo, em toda sua mediocridade, não se compara a nenhum herói. Anti-herói talvez fosse o termo que lhe coubesse melhor. Em todo caso, preferimos chamá-lo simplesmente “todos nós quando (não) somos nós mesmos”. Assim como as pessoas do ponto de ônibus, nós que observamos deste binóculo embaçado, reconhecemos em Olavo um pouco de nós. Pode ocorrer que a este ou àquele leitor ainda não tenha capitado, mas logo todos teremos algo em comum com Olavo.

Enfim, Olavo chega ao portão de sua casa, mas, ao se deparar com as barras de ferro e a fechadura que há pouco lhe serviram de prisão, ele para um segundo. Olavo não deve, não pode, não consegue entrar. Nem mesmo seu corpo agonizante lhe motiva a voltar àquela masmorra. Não importa o que aconteça, ele já atravessou esse portão pela última vez e não irá atravessá-lo novamente. Não. Um segundo passa, e Olavo abandona ali sua mochila. Ele já não pode mais se conter, então continua a correr um trote torto desengonçado rua acima. Em frente ao número 274, uma casa em construção, de muros altos e intolerantes, ele para, arranca a fivela do cinto, abre a braguilha, abaixa as calças - pra horror dos transeuntes. Não há tempo pra se agachar. Olavo respira ainda um átimo e caga uma bosta imunda, fedida, nojenta, viscosa, que lhe escorre pelos calcanhares até as raízes de árvore, que demolem por baixo a via pública. Alguns adolescentes a caminho de uma festa, ex-alunos de Olavo, gargalham nervosamente, escatológicos, desvairados.

segunda-feira, 29 de abril de 2013


pela boca das solas
minhas botas embotadas
colhem pedras de coleção

malsino turmalina
navalha cascalho
eutanásia topázio

cada falso passo das patas
é novidade pontiaguda
pela pele dura do casco

a grama insolada irradia
pelo corpo encrustado
sela o desejo e o asco

cavalgo até a sombra
mais próxima e pasto
sem mostrar comoção

ágata vermelha  grelho
hematita rebito
rubi

terça-feira, 23 de abril de 2013

Meu amigo, Fundador do Mundo


Quando o conheci, mal sabia,
já tardava o Fundador do Mundo
a carregar-se de penas à mão.
“A leveza...”, diria ele, se soubesse
dizer de pesos e medidas
“...a leveza se mede pelo peso
de teus próprios ombros, rapaz”
Diria com propriedade avessa,
pois que nunca se carregou só,
ainda que convença do contrário.
Errante, como a mula guiando
à cabriola o espanhol sanguinário,
foi-se por aí ter com os nativos
de seu próprio mundo puído.
Levou das bainhas os gumes,
das estrelas banhos de negrume,
dos uivos a noite tremenda.
Carregou-se muito de pouco,
e preferiu o instinto à trilha.

Quando o conheci, estendeu-me
a mão. Onde vi fraternidade,
havia, na verdade, um grito de ajuda:
“Beije-me os dedos escalavrados,
glorifique este meu pútrido pedaço...”
As mãos que fundariam o mundo
clamando de mim o absurdo:
beijar leproso como a um santo.
Lázaro sem manto, Atlas anti
titânico, viga sem prumo.
Erigiu para si um túmulo,
e o fez com as pedras coalhadas
no próprio peito abscesso,
e nos rins desrimados.
Conquistador de elmo desalmado,
Francisco de ego inflado.
Como eu, mero observador barato,
resistiria às pérolas do mercante amigo?
Infeliz dele, e de quem o tocar.
Midas de petróleo, de asfalto.
A fama, também a carregou no bolso,
e acabou assim difamado e faminto.

Quando o conheci, me apresentou
o mundo que ainda não havia fundado,
conhecimento profundo, sobraçado.
“É isto que trago: um cigarro, uma cana...
só preciso disto e de uma cama
que não seja a minha própria.
É lá que se funda o mundo, rapaz
atrás dos morros de mulher,
donde morro cada vez
se me chego ou me afasto.
Os lábios, os lábios são o Fausto,
e a morte é o único e vasto campo
onde semeia Davi, o mais forte dos fracos”

Peço-lhe uma pena, Fundador,
pra fundir a tua à minha
pequena imagem de autor,
cuja sagra é só cocar menor,
eco do eco de teu melhor...

sábado, 13 de abril de 2013

Bem-te-vi


o peito do pássaro se enrijece de penas
intransponível gaiola emplumada
armação de melodia espessa
se entoca sobre as folhas
e raso mergulha dores
em meu acaso
peito aberto

quarta-feira, 13 de março de 2013


a graça da garça

é que ela arregaça
o sarongue esgarçado
à beira do lago

gira o pescoço
agulha na ponta
costura a água

um peixe um passo
um peixe um passo
e pára.

a garça é a graça.

quinta-feira, 7 de março de 2013

Gleba


Gleba é diferente de qualquer lugar. Isto é, quem vai a Gleba, se há quem já tenha ido, sabe que Gleba não é lugar. Chegar a Gleba pela manhã, se é que se chegue, é desconcertante. E o desarranjo ingeográfico em Gleba deve-se ao fato de que um homem de Gleba certa vez leu a Comédia do Paraíso pra trás e não virou Santo. Diriam que todo o processo de canonização não durou pouco mais que uma manhã e que, graças ao Santo que não foi, Gleba quase se tornou um lugar.

Como se vê, começaram a falar de lá. E falam que, no verão outono, ficariam em Gleba pela tarde, se em Gleba se ficasse. A esta hora?, dizem que diriam, A esta hora em Gleba?! E cogitam mais. Discutem. Conversam. Todos. Mesmaotempo. Dissoante. E o som se propaga intermitente em Gleba, fato só menos inédito que a própria Gleba vista de além. Ecoa que Gleba seria onde desalinha, a curva que não acaba. Sempre mais um propondo, bisbilhotando, opinando, porque Gleba moraria no epicentro de um vale cercado de todos os lados por olhos e más línguas. E na várzea do lago central, um mercado, na pupila de Gleba, cuja presença anunciaria a tragédia.

O som absurdo irradia do buraco inexistente, que se desabriu no primeiro e último terremoto, reverberando pelas cordilheiras impossíveis, e o solo, estéril, se consumiu. E quanto mais se tirou, mais se houve que tirar.

Em Gleba não se chega, não se fica e, de lá, sem lá, não se parte. Os homens de tempos tantos depois daquele homem crédulo não mais têm que se despedir. Nem que se cumprimentar, nem que dar bom dia, pois nenhum morador que não existisse ofereceria comida e abrigo a forasteiro que não quisesse pousar. Gleba não é hospitaleira, assim, naturalmente, não se visita Gleba, pois não há quem não imagine encontrar um hotel onde não há. Mas pra quem fala de Gleba, sua arquitetura é simples e coerente: tudo que se desconstruísse em Gleba seria a partir do ângulo negativo do que se nega.