Chovia e eu tomei um ônibus. Perdi os instantes. Dei-me por mim em minha parada. Na calçada, a fumaça do busão me acertou. Lacrimejei. Tossi. A moça de guarda-chuva pensou que era de chuva. Achei normal. Ladrilhados, lado a lado, os retângulos no chão se pareciam com minha casa. Vaguei. Dobrei no café da esquina, como sempre fazia. Uma parada para ler o jornal. As grandes fotos de hoje em dia. Fazia tempo que não a via, Luzia. Tive de ir.
Talvez tenha me distraído com a mesma náusea. Mas me retomei perto de outro ponto de ônibus. Uma esquina barulhenta. Esperei. Pedi informações a passantes oblíquos se esquivando de mim como dos carros. Era mais fácil pedir informações quando eu sabia onde estava. Os sentidos pouco a pouco se reconheceram num muro. Não me recordava da extensão daquele muro. Nem das raras sombras de uma árvore. Quase pensei que andava na horizontal, sobre o muro, desafiando as leis municipais. Tentei a volta ao quarteirão.
Num canto fúnebre me esborrachei no mijo. Sacos de lixo até a boca. Um homem de terno preto riscado em branco se levantou detrás de um saco, como quem toma uma garrafada e se mantém limpo. Espalhou com os dedos o pó da ombreira e me encarou. Os olhos cinza encharcados eram redemoinhos. Encaramo-nos por um tempo indefinido. Talvez o tenha perguntado onde estaria. Talvez tenha respondido.
Como quem regressa de um mergulho em suco gástrico, pensei: ‘Se dei por mim, o muro acabou’, pensei. Como num desejo realizado, encontrei uma esquina em minha frente, provando-me estar certo. Ainda assim, era difícil desconhecer. A sensação de dedos em minhas mãos era indiferente. Minha consciência brotava de um choque. Minhas memórias se pareciam. Tatos e sons se assemelhavam. Entendi um pouco da chuva e porque escorre pelas calhas. Me acalmava e tão breve eu dormia.
Só poças a meu redor. Eu inteiro era uma poça e as moças de saia comprida pulavam-me assombradas. A luz nublada de fotografia. Faces desconhecidas. Cada qual carregava uma face. Retratos. Terços e velas. Um perfume conhecido. Pouco e pouco me deixei absorver e levantar feito fumaça, sequer a sombra de um ônibus. Pequenos grupos em romaria. Os veios de correnteza me arrastavam. Imaginei que, se não estivesse morto, a língua ainda poderia sorver os líquidos. Vi do outro lado um butiquim. Fiquei pela porta esperando o homem sair e entrei. Uma coincidência tremenda ver aquele rapaz no caixa, gravata verde escuro em cetim. Mas estava tão atarefado que não parei para cumprimentar. Não saberia também o nome. Despedi-me num virar de ombros. Tinha para mim de novo as calçadas.
Segundo de novembro. A data. Neste dia eu tinha um encontro. Luzia me esperava. Cruzei a cidade de outra cidade subterrânea e lá fui encontrá-la. Nem podia perceber que se anunciava um verão. Tomei o primeiro ônibus para o metrô. E tudo estava claro. O cinza se esbranquiçava, como um efeito de revelação. Fui na frente, no banco ao lado do motorista, que parecia querer me dirigir a palavra, mas não o fez. Se o fizesse, eu já teria um bom conselho. Que dirigisse.
Saltei em frente à portaria do jardim ao lado. Observei o sinal e as listras no chão. Atravessei como o cão que encontrei do outro lado e o agradeci pela companhia com um chamado. Ele recusou meu incentivo e continuou a farejar. Vi a porta de entrada do ponto de encontro. O enfeite no alto reluzia, sob o buraco de nuvem que se abrira sem que eu notasse. Cruzei e quase percebi um aceno do velho na entrada. Mas meu vagar ágil se desviou de obstáculos. Voei dentro de mármores lisos e de portas seladas. Cumpri a distância de uma reta numa cifra de segundos. Segundo de novembro. Hoje, então.
Faço silêncio. Estou na frente de meu túmulo. Leio meu nome inscrito. O bilhete de concreto de uma passagem, duas datas inscritas. Uma é a data de hoje há 30 anos atrás. A outra não consigo compreender. Me volto ao redor. Só o cheiro das velas já queimadas. Conto as novas contas penduradas na cruz de minha lápide. Nelas se pendura outra cruz. E as cruzes se perpetuam pelo cemitério. Cadê Luzia?, me perguntei. Ela já foi embora - disse-me a voz do passado, deixou também uma rosa e uma profecia sobre o tempo. Quer que eu leia? - a voz suspirou enfadada.
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