Arquivo pretensiosinho

terça-feira, 13 de julho de 2010

O pequeno cobrador.

“Foi pra isso que vim!” Dizia o menino que surgira em minha frente misteriosamente, como o Mr. M da meninada, que carrega no bolso da bermuda doces e bolas de gás-ninja. Sua pequena mão estendia-se em minha direção, e o olhar monótono de alguma forma combinava com seu rosto sujo e suas roupas mal-cuidadas. Além de qualquer especulação barata sobre as condições sociais e, talvez, psicológicas do sujeitinho, não havia qualquer traço em sua aparência que me ajudasse a identificá-lo e compreender vagamente porque ele me estendia a mão daquela maneira. Identificar-se era pra ele desnecessário, como se aquele ou aquilo que o mandasse ali já lhe houvesse explicado em minúcias o modo de proceder: estenda-lhe a mão e não se mexa enquanto ele não lhe der o que nós temos pra receber.

Num daqueles flashbacks muito usuais nas narrativas, acabei mergulhando em uma epifânica busca por qualquer memória daquele garoto. Mas meu brainstorm psicodélico inteligentemente me levou a considerar: você não conhece o garoto, absolutamente! Você deve tentar se lembrar das pessoas pras quais você está devendo alguma coisa... Ora, sendo quem sou, nunca fui bom devedor. Geralmente as pessoas se lembram de seus credores, nem que nunca os paguem, e até mesmo por isso devem mantê-los vivos na memória. Mas eu não, sempre paguei minhas dívidas no ato e cuidei de não deixar nada pra trás. Não sei por que, mas toda vez que tento me lembrar de alguma coisa me vem à mente histórias do primário, da escola, da faculdade, do primeiro emprego. Nunca me lembro de ontem nem do que comi hoje de manhã no café. Talvez o Tertúlio... Não! Só me lembro dele por causa do nome estranho, que parece nome de churrascaria da orla de Santos, aliás nem sei se o reconheceria se o visse, a menos que estivesse empurrando um carrinho com uma bela picanha no espeto e um sorriso gentil no rosto: vai picanha? Aí, com certeza, seria o velho Tertúlio! Talvez a Madre Superiora. Mas eu já cuidei de pagar todas as somas morais que eu devia pra ela antes de sair do ginásio: horas e horas a fio escrevendo em cadernos de caligrafia inúteis. Quando leio nos jornais eletrônicos, blogs e etc. “estamos na era digital”, meu ego se infla de uma pontinha de vingança. Não falei, Magra Superiora? Minha caligrafia continua ininteligível, mas ninguém se importa. Ou o Seo Tanaka. Não, não. Acho que é ele que ainda deve pra mim, nunca pagou direito as parcelas suaves dos meus salários já atrasados. Dizem que Seo Tanaka faliu por causa de uma ação judicial conjunta, de todos os funcionários do restaurante italiano, no qual fui garçom por alguns meses. Sendo quem sou, eu não participei da tal ação. Talvez...

Que é isso?! Algo me distraiu de meus devaneios: a palma da mão do encardidinho tem uma bola preta bem no centro, algo como sangue podre, uma ferida nojenta. Coitado, deve sofrer maus tratos de onde vem. Mas como eu, sendo quem sou, deveria pra alguém que maltrata seu próprio filho? Ou, sei lá, como eu ficaria devendo pra alguém que maltrata crianças? Até onde sei, parei com aquele negócio de comprar quadradinhos verdes de enrolar e tragar. Talvez não, mas também não vem ao caso, ele não poderia vir de um lugar que vende isso, não com essas roupas, aliás, poderia!, mas seria um aviãozinho iniciante sem moral pra vir cobrar alguém como eu, sendo quem sou. A Maria dizia que eu sou um sujeito perigoso. Mal sabe ela. Sou do tipo de sujeito mais perigoso que existe! Sou normal. Ah, Maria, se você se chamasse Beatriz eu sairia do Inferno só pra te encontrar no chatíssimo Paraíso, nas alturas de meu sono... Me lembrei de uma canção de Roberto Carlos... “eu tenho tanto...”.

Moleque ranhento! A gente sai de casa numa boa, cantarolando, assobiando, dando bom dia pras pessoas, tomando conta dos afazeres como um cidadão de respeito, sendo quem sou, quando aparece este pequeno mágico miserável pra me cobrar de alguma coisa. Porra, já pago mais do que ganho em impostos e, sendo quem sou, voto sempre no melhor candidato, participo do Voluntariado Damásio em prol das causas nobres, tenho um vira-latas que achei na rua e chama Rex, e se não adoto uma criança é pro bem dela! O que mais eu posso fazer? Se esse moleque está querendo uma esmola, por que não fala logo? Por que me vem com esse diabo desse mistério só pra me aporrinhar? Problemas sociais? Temos um monte. Aliás, sendo quem sou, eu cumpro minha parte, muito obrigado! Nessas horas eu vejo que deveria seguir os conselhos de minha mãe... Sei bem o que está pensando, mas não vale a pena elencar os conselhos de minha querida mamãe, ainda mais se é isso que você espera de mim, seu moleque ranhento! Vai limpar a cara, volta e me fala o que você quer, mas vai logo que não tenho o dia todo.

Mas eu não me mexi, nem um músculo do maxilar. Ainda restava a dúvida. Por sorte, tempo e espaço são a mesma coisa, segundo Einstein. O azar é que é impossível eu me transformar em luz e só voltar daqui a alguns milhões de anos. Mas que eu posso passar a tarde inteira encarando esse moleque sem que ele nem eu digamos uma palavra e nem façamos nenhum movimento, isso é fato! Se não viro luz, viro fotografia. Essa chaga, aliás, daria uma boa fotografia. Sendo quem sou, poderia vender pro jornal, ou expor numa galeria renomada. Na primeira opção, eu mesmo me encarregaria de escrever a história trágica da família de centenas de pequenos ilusionistas cobradores, comandados por um pai de rua que não cuida de suas feridas e os expõem a riscos radioativos como minha presença. Na segunda hipótese, creio que seria necessário algo performático, como rasgar todas as fotografias vendidas ao final do evento. Para este caso talvez fosse melhor guardar os negativos, a fim de não estragar meu futuro na carreira artística.

Antes que começasse a aborrecer o menino e aborrecer ainda mais a mim mesmo, resolvi dar um passo pro lado. Ignorei. Sim. O que você faria numa situação dessas? Esse discursozinho de “Foi pra isso que vim, nhá nhá nhá!” é balela. Ele só quer que eu pare pra escutá-lo. Vai ver esse moleque é pastor. Vai ver é político. Vai ver é comunista. Vai ver é doido. Vai ver qualquer coisa e me deixe! Tá passando Sessão Animada na TV da loja da esquina. Xispa. Raspa. Rua. Fora. Sendo quem sou, tenho mais o que fazer. Um passo pro lado esquerdo, escapo rápido por trás do orelhão, desvio da senhora com a bengala que vem se arrastando e ganho tempo pra atravessar a rua depois que o uno amarelo passar. Pega eu! Nessa escola que você está estudando, meu filho, eu já fui expulso algumas vezes... Mentira, nunca fui expulso de escola nenhuma. Mas minha mais recente idéia genial de fuga, e a pseudo-ruptura da epifania-clarice-lispector-lugar-comum é digna de deméritos, não?!

O moleque também deu um passo pro lado. Quase que antes de mim. Devia largar essa vida besta, nascer de novo e virar zagueiro de futebol. Então ele poderia estender a mão pro árbitro, pro técnico, pro dirigente, pro presidente da federação, pro torcedor... Mãozinha nojenta. Seu rosto ainda era aquele: sujo, ranhento, sem emoções maiores. Seus olhos não pediam. Ele era uma máquina, um robozinho do lixão. E agora? Sei bem como ganhar tempo pra arquitetar mais uma fuga genial, sendo quem sou, viro e remexo e não saio do lugar, mas já não tenho muita paciência. Não gosto de ser grosso com crianças. Já disse, é por amor às crianças que eu não tenho filhos. Mas se ele continuar desse jeito, eu vou ter que tomar alguma atitude mais dura. Ora! Onde já se viu? Um sujeito de respeito como eu? Sabe quem eu sou? Moleque! Dá licença!

Não fiz nada. Aí tentei um passo pra direita. Também não deu certo, pelos mesmos motivos da primeira tentativa. E aquela chaga já começava a feder. Ou ele todo é que precisava de um banho mais urgente do que eu havia imaginado. Ou o bueiro que está sempre entupido. Ou ele veio do bueiro e todas as causas anteriores se somam. Ou eu ainda tenho aquele problema de hálito... Ah, Maria! Se eu soubesse antes, teria corrido ao gastroenterologista. Caralho! Não é possível! Que é isso?! Será que esse moleque é meu filho com a Maria? Ou, sei lá, com a Madá? Putaqueopariu! Será que ele veio pra me cobrar a pensão atrasada? Quantos anos tem esse menino? Uns oito ou doze? O coitado está subnutrido, não dá pra saber direito. Sendo quem sou, estou perdido! Bom, talvez ele tenha sete anos e seja esperto demais pra idade. E é por isso que mandaram ele pra me cobrar! Elementar, como não pensei nisso antes?

Lembrei que meu tratamento pra ejaculação precoce, baseado em Cogumelos do Sol, tinha me esterilizado. Não sei como, mas sempre acho que é opção minha não ter filhos. Isso é sério. Preciso ver um psiquiatra. A Maria ria de mim. Mas é sério. Não quero entrar em detalhes. É algo que envolve somente a mim, meu plano de saúde e meus impossíveis descendentes. Mas e agora? Uma coisa é certa: tenho que fazer algo com esse moleque. Lembra da pedra no caminho? É isso. Não superei. Pronto. Passei a vida no poema da pedra e estou vivendo agora uma péssima releitura daquele do José. Enfio a mão no bolso e não tenho nenhum trocado. O jeito é fazer cara feia e ser mais rápido dessa vez. Vou apontar pro céu, dizer que tem uma nuvem de algodão doce e um balão de sorvete, quando ele olhar, eu escapo mais rápido que as mãos do mágico. Se eu fosse menino, funcionaria comigo. Mas aquela carinha remelenta e desprovida de qualquer ingenuidade perversa me imobilizava. Sendo quem sou, eu não seria capaz dessas maldades terríveis.

Tento o último fôlego: eu irei beijar a chaga na palma da mão do menino. Irei descobrir outra palma e os dois pés com chagas, e o corpo, então, inteiro esfacelado. Ele irá se erguer nos céus e todas as pessoas farão fila pra beijar suas feridas, depois lambê-las. E quando ele se injuriasse, iria atirar bolas de fogo nas multidões, carregando todos pra loja “Colchões Beatriz” ou pra incrível viagem comandada pela “Virgilio’s Touristic Tours”. O meio termo seria a Padaria do Manoel: quem comer duas coxinhas e agüentar firme, ganha um colchão. Um viva pra salvação. Três vivas pra danação. E fim, quer dizer, eterno. Mas não será assim. Que diacho esse moleque quer? Sendo quem sou, o que eu faço com ele? E o que eu faço com esses devaneios absurdos que estão me acometendo ultimamente? Calculadora. Relógio. Mandrágora. Ampulheta. Vesúvio. Cataclismo. Inconsciente. Nostalgia. Peripécia. Sentido. Profusão. Escombro. Sendo quem sou, tenho que fazer alguma coisa com isso tudo, mas acho que não dá pra fazer um conto.

Um comentário:

  1. Livre simulação de livre associação de ideias... Tudo muito bem encaixado, congratulações.

    Lembrou-me muito H. Miller nos dois Trópicos.

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