Arquivo pretensiosinho

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Verde

Verde. Verde que há muito tempo não enxergo. Há muito tempo não enxergo nada. Uma dádiva que a vida presenteia em uma caixa abandonada na soleira da porta e um toque de campainha de desassossego pela manhã de domingo. Não enxergar. Não ver os movimentos lentos aristocráticos e toda essa fumaça funérea que os circunda. E o fosco do olhar que há muito tempo não chora. E que não vejo. Sei que vive ainda. O cheiro. O cheiro de verde que até agora pulsava, mas que jaz morto em minhas mãos, ainda frio. No fio simétrico da folha espalmada, e as veias radiadas. Destacada de uma árvore, um indício de eternidade. É suicídio nascer árvore. Mas não ver, não ver é um presente para cada outro sentido que resta. É um prazer desconhecido para alguém do outro lado do salão. O homem do espelho. Evitar os olhos cruzados. Tão perigosos. Não penso em mais nada além do cheiro e da forma perfeita para a ignorância dos dedos. Nada que desdobre em um milhão de focos caleidoscópicos foscos e sem sentido. Não interessa. Nenhuma imagem de retina. Só mesmo o verde morto desta folha de laranjeira, crespa sob o rosto encerado. Pouco a pouco pela chuva, pelo vento, primavera. No máximo uma primavera. Verde que até pouco não valia de nada, que sob meus olhos perdidos em um pensamento que procura entender as raízes lógicas incrustadas no solo negro. Verde. Amarelo. Marrom. Negro. Seria verde outra vez.

Me ajoelho, apanho um tanto de terra e pressiono contra o nariz, esfrego em toda minha cara. Úmida. Úmida como a vida que brota de sua fertilidade e se espalha. Não há nada que a impeça. Nem o holocausto, nem Hiroshima, nem Honduras ou Iraque. A vida que aguarda em um canto seguro que jamais poderá ser bombardeado de humanidade. A hora certa de viver outra vez. De uma semente, um verde que brotará. Em uma nascente de rio congelado ainda no alto dos Andes, Kilimanjaro, ou sei lá. Sei lá que fonte se esconde na densa floresta que não enxergo mais. Provo um pouco do solo. Mastigo terra e alguns pedaços de galhos e folhas. Pedaços de quaisquer coisas que vivam e caíam para serem devoradas por animais, ou só apodrecerem sem uma história. E não ouso contar sua história só pelo gosto que têm, não arrisco pressupor, me isento de pretensões e de culpas que poderiam vir a qualquer momento. Inesperadamente um tapa de vento. E devoro a terra, como se esperasse nascer de novo uma árvore. Arbusto rasteiro ou orquídea parasita.

Orquídea. E toda beleza de que me privo. A beleza é um dom sensitivo, que se despedaça com o tempo, pouco tempo. Quantas vezes eu vi. E de nada valeu. Cada detalhe ao longe, a linha do horizonte, cada vez mais turva com o tempo de Prometeu. E do fogo que queima hectares, hectares, só ouço os estalos dos galhos e o gemido dos bichos que fogem para outro lugar. Mas inóspito, mais insípido. Não enxergo nada. É o caos que espero. E devoro mais uma palma de mão e outra folha de seiva cítrica. Não irei competir jamais com os porcos nem com as abelhas. Pois sei bem do meu ofício. Fuçar a terra, mastigar a seiva. O bruto da seiva, o fruto da terra. O pouco de vida que ainda resta e que assim deve ser.

O meu guia não me trouxe. E há dias que procuro uma poça d’água. Sem dizer uma palavra, sem ler um cartaz, sem parar em frente à vitrine. Porque prevejo tudo o que pode ser dito em qualquer ocasião, tudo o que pode ser escrito para indicar qualquer caminho insólito, e o tempo que leva um antebraço entre o repouso da poltrona e o cigarro até a boca. Mandei meu guia embora, procurar coisa melhor. Nunca paguei mais que uma nota, mas sempre foi o que tinha de maior no bolso.

Penso. Eu deveria estar aqui. E mastigo e apalpo, folhas feitas para o tato. Terra úmida. E uma poça. Uma poça de chuva que meu casaco absorveu. E o cheiro e o som dos pássaros me contam que talvez tenha sido eu. E não estou aqui. Mas as fugas mais incertas, por mais que se queira, não terminam em tragédia e nem Hollywood com um beijo no final. Faça-se a guerra. O verde camuflado pede em brado cada vez mais alto. Em grito cada vez mais urgente. Faça-se a guerra, decepem as mãos, estourem os tímpanos, cortem as línguas, encharquem os narizes de molho-de-pimenta. Sirvam-se. Antes que esfrie, sirvam-se. Encham a pança. E deixem os olhos em um pedestal, para que se arregalem frente ao seu triunfo, que acabará, assim como tudo, no solo negro. Fértil. Sem ninguém mais.

Não tenho medo por não ver. Não carrego nem cajados, nem profecias. Não carrego comigo a luz do dia. Doei tudo o que tinha. Nem sei bem o que tenho no bolso. Talvez um ramo de alecrim, hortelã e pedras lisas. Seixos de um riacho. Nenhum tempero importante, nada que um chef de prestígio seria capaz de servir com fígado de ganso. Nem ovas de peixes. Nenhum animal. Não agarro os animais, não os despedaço, não os como. Só os escuto, farejo. Me contento com a sombra. Mastigo a terra, mastigo tudo até o final, até me entupir, até que morra e descubram minha história. Ousadia. Deixo para os poetas. Mas o licor em fase bruta de laranjeira me adormece.

Acordo aqui, esperando o final mais tranqüilo. Ainda esperando o final mais tranqüilo e o líquido de uma parreira que me contraria cada sentido a não mais poder. Não ouço, não cheiro, não toco, não provo. Vejo a terra e peço um beijo que me fará uma lápide de musgo e pedra.

Um comentário:

  1. Grande... Gostei. Criou muito bem a atmosfera, sensações quase palpáveis, a coisa toda. Muito bom.

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