Então seria bem como minimizar os fatos. Fazer de tudo um pouco mais clichê até onde o gosto pegue nojo. Mas demora tanto! São resistentes os que desbravam mais de duas linhas ou três bocadas dessa geléia com café. Ninguém conta a respeito do puta trabalho que teve o homenzinho de mãos grossas para colher cada uma das amoras delicadas sem esmagá-las antes da hora. E também não se fala do ódio tremendo que a cozinheira sentia enquanto fervia seu amor escaldado na panela de todo dia. Não é bem o mal da profissão em si, é mais como o mal de não haver grande coisa para se observar a não ser a satisfação alheia, é um pessimismo assim meio rançoso. Um gole para engolir melhor. Quais seriam as receitas misteriosas dessas surpresas que encontramos anônimas na beira da estrada? Um quase-almoço de mão única, sem saída para o Rodoanel.
Tenho certeza de que agora seria o momento certo de abrir caminho pela esquerda. E não há mesmo maneiras de se tornar pública sua vontade sem se ridicularizar. Pisca-pisca amarelo. As pistas todas ainda não estão prontas e as promissórias são documentos grilados de outrora. Fascículos, capítulos, versículos. Alô ouvintes da 123 FM. Um trocado de gorjeta. Muito obrigado, bom dia, muito obrigado. Nem bem o dia começou e tudo já voltou a ser como era antes. Maldita torrada. A semente da planta do trigo moído em farinha ensacada que vai até a mão experiente do padeiro com três filhos para criar até às cinco e meia. O pão velho. Aí põe no forno e torra e saca e passa a massa densa por cima. As lanternas vermelhas vão se repetindo de par em par. A família na vã vai cantando em coral até o parque para o piquenique. Ninguém questionou até a agora a existência da felicidade, sim?! Uma mordida. Parece domingo.
O caminhão vem fumando desde longe, pois que acenda mais um, até que o motorista morra de câncer ou cheio de cachaça na cara e um talho de peixeira no bucho. O café da manhã é a refeição mais importante do dia e tem que estar sempre atrasada, e assim me parece que as regras de burlar o horário do almoço e o limite de velocidade são bem respeitáveis. Mas o tempo todo é desespero.
Ouvi dizer que andam por aí se entregando às necessidades. Pela força da ambigüidade, acabei mandando uma meia-dúzia à merda outro dia. Poeira. Amora, amora. Quem é o idiota que toma café preto por cima de geléia de amora? E desperdiçar dois achados? Um café excelente e uma geléia estupenda. É uma pena que qualidades extremas não convivam bem. O erro do dono da padoca foi colocar duas opções irrecusáveis entre tantas mediocridades. E bem porque Einstein vem depois de Nilton, não há espaço para mais de uma excelente qualidade em um só lugar. A melhor geléia da cidade. O melhor cafezinho da região. No outdoor imaginário: “o melhor café com a melhor geléia!” - ninguém acredita, não dá, não combina, perde a força. Uma. Só uma boa frase para cada, por favor. E não me venha jogando farol na cara!
Falta de humildade é passar de BMW rasgando pela direita. Ou sei lá também, o carro pede. Tomara que no arremesso da próxima curva a pressa voe ladeira abaixo. Chamem os bombeiros! Hora de ser humano. De repente vem de novo o motorista do caminhão fumando. Homem amargurado. Nunca está bom. A liberdade de poder fazer o que bem entende com essa carroça enorme acaba frustrando a pessoa. É compreensível. Todo homem desprezível, ao contrário de uma mulher com a mesma qualidade, é compreensível em suas idiotices. Machismo? Não quando o rádio está alto e não há ninguém por aqui! Aliás, você não tinha mais que ler? A sociedade que blábláblá e uma esporrada no banco de trás.
Uma companhia sincera cairia bem. Café com geléia. Algo para enjoar mesmo. Para sair na mão feio e rolar serra abaixo até o Guarujá. Nada de ficar minimizando coisa grande. Pancadaria titânica por mil e uma noites em cima, do lado e embaixo da cama. O possível mais bizarro. Gás carbônico faz mal para a cabeça, mas o mundo é redondo. A medicina avança em direção ao desconhecido e o motorista do caminhão foge da ambulância. Não dá para falar mais, a não ser da tatuagem borrada no braço esquerdo: lado do motorista, óbvio. Bigodão ridículo. Ainda vai ter história sobre esse camarada...
Então vem um túnel e o foco vai se perdendo, afunilando-se até a crua espera pelo final. Há metáforas muito boas para um túnel. De um lado o impulso, e o amanhã que vem depois. A travessia, a mudança. Tudo valeria a pena se o esquizofrênico não ficasse fingindo para si mesmo o tempo todo. Diagnóstico? Tesão, oras! Uma companhia calada cairia bem para dividir a gasolina.
No início não parecia que as coisas estavam começando de novo. Mas o sol nasceu ao leste e já está indo para o oeste de novo. De novo. Irritante inevitabilidade para a qual os carros são placebo: de um ponto a outro em um curto espaço de tempo, mas tudo depende dos buracos na pista e do que sobra dos amortecedores. Onde já se viu café com geléia de amora? E o problema é que as manhãs não são mais desconcertantes, tanto faz a cama, a cela ou o toró que caia, há sempre um negativo da imagem guardado na gaveta, coisa antiquada, verdade que não foi revelada, memórias preciosas de família. Seria melhor perder tempo com poesia a usar o cinto-de-segurança.
A estrada está perigosa, mas ninguém falou ainda do acidente ali na frente: um caminhão, uma BMW e um outro carro bateram feio e parece não haver sobreviventes. Sangue, e tal. Vísceras mesmo. Deixe quieto, estávamos falando de café com geléia de amora e em como minimizar os estragos, não é mesmo?
Gostei. Depois de voltas e voltas, termina com algo que supostamente deveria ser trágico, mas que acaba sendo banal. Uma simples parte estúpida da rotina.
ResponderExcluirGostei mesmo.
E eu gosto de geléia de amora com café.