Arquivo pretensiosinho

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

A ponte.

- Mas o que você está fazendo aqui?

Uma fumaça muito escura toma a extensão da ponte, e não só da ponte, do bairro, da cidade, e fede a borracha e a gasolina queimada, um odor nauseante, misturado a outros odores sintéticos e orgânicos, vindos do córrego imundo, onde bóia o lixo descartado pelas indústrias e habitantes. Porcos! Das tubulações às margens jorram os líquidos podres, vindos por baixo da terra das construções fálicas que jazem próximas, plenas de crianças com doenças respiratórias e de adultos viciados em cheiro de combustível queimado de seus veículos, gás carbônico. Veneno. Neste ambiente, o céu de chumbo é onipresente. O mundo fede muito, ardem as narinas, a boca fica seca, os olhos coçam. O homem caminha pela ponte sobre o rio decrépito, pensando em tudo isso e ainda preocupado com o início do mês. É dia 31 de julho e amanhã será agosto, mês do desgosto, para fazer uma rima e não encontrar solução. O salário é pouco e aos poucos o homem caminha sobre o vestido branco de sua esperança e o vai manchando com a sujeira da sola de seus sapatos. Nem pensa naquela mulher de hoje mais cedo, não consegue pensar em nada de muito préstimo, nada que lhe agrade, e nem olha para o chão, só quer saber de chegar do outro lado da ponte, e sair logo de perto deste rio imundo. Mira o fim da lástima, do outro lado do rio, falta pouco, sempre falta pouco. Atrás de mim uma voz grita agoniada...

- Mas o que você está fazendo aqui? Que maldição! Já falei para não ficarem andando por aqui! Já falei para todos vocês irem embora daqui! Por que está me olhando? Vai...

Vai se foder. Tanto faz. Não será mais um demônio deste inferno que irá piorar o dia. O homem se vira, sem grandes consternações, e continua a caminhar, depressa, quer chegar logo ao outro lado. Só tem doido aqui mesmo. Mais alguns passos e a ponte parece cada vez mais longa, não tem fim. Caralho! Tinha que ser hoje, aliás, amanhã vai piorar. Tem as coisas que a Lurdinha pediu. Ainda assim, os pés aceleram, porque amanhã tem que chegar logo, tem que começar logo o mês de agosto, para acabar logo o mês de agosto. E todos os meses deveriam acabar logo. Aliás, que importa também? No dia primeiro de janeiro é necessário trabalhar. Peão que é peão se fode, meu irmão! Há muito tempo que a esperança é uma dama nua, que não tem casa e vive na rua, nesta sujeira, nesta imundície, implorando por uma esmola, e acostumada com as poucas moedas que chegam das mãos sem calos de quem não precisa passar a pé pela ponte, sonhando com os trocos mais gordos que virão. Às vezes a esperança se prostitui, não consegue muito, já está toda esfarrapada, alguns poucos vêm, fazem como querem e deixam uns dinheiros amassados. E o encarregado? Caralho, de novo! Porra! É todo dia a mesma encheção! As pessoas estão alienadas, umbiguistas cobertas por suas pequenas e cada vez mais minúsculas carapaças a que chamam de apartamentos, de casas. Grades. Vivem entre as grades, gostam de barras de ferro e de tetos com decorações em gesso, e de quadros que nada dizem nas paredes cheias de prateleiras com livros “cheios de palavras que eu sei que nunca vou usar”. O encarregado só quer isso mesmo. Quer também sair na sexta-feira para o bar, encher a cara, pegar a loira rabuda e se mandar para um motel, depois diz para a mulher que teve que fazer hora extra. Hora extra, hora extra, se ele vivesse a vida que vivo e tivesse os caprichos da Lurdinha para satisfazer, ele veria o que é uma hora extra, muitas horas extras. Nenhuma hora extra, para falar a verdade, por que nada sobra, nada é extra, nenhuma hora, deve-se dormir e trabalhar, e dormir e trabalhar. “O trabalho liberta”. Na entrada de um campo de concentração nazista estava escrito, em letras absurdamente reluzentes, liberdade? Isso é escárnio. Tanto faz... O fim da ponte se aproxima, e agora muito próximo. Pronto, está acabando esta ponte. Fedor maldito, rio maldito, monte de bosta, prédios malditos. Loucos malditos. Quem sabe eu não paro com essa reclamação besta quando chegar do outro lado. Pareço um velho. Lembro-me daquela mulher, aquela que vi no refeitório, um anjo, seu rosto com traços finos, seu sorriso cativante, seus movimentos graciosos. Irradiava luz, era linda, um sonho, um anjo. Dava uma paz. Amanhã descubro o setor dela, ela sim...

- Seu filho duma puta!...

Uma pancada na cabeça seguida de um barulho surdo derruba o homem. Foi acertado com um taco de beisebol. Na nuca, mal soube o que aconteceu, desabou todo torto no chão. E ficou lá. Um pouco de sangue sob a cabeça. Estaria ainda pensando na Lurdinha e as coisas que ficava pedindo? Na esperança? Na sujeira? Tanto faz. Era assim que pensava: tanto faz. E tanto fazia. Jazia ali. E não sentia mais o fedor daquela bosta toda, e os encanamentos e os carros não faziam mais sentido. A imagem do anjo como uma foto instantânea eterna, um flash para sempre. E o outro gritava.

- Não vai sair, não? Não vai sair daqui seu desgraçado? SAI DAQUI, SEU DESGRAÇADO! SAIDAQUISEUDESGRAÇADO!!!




(20/08/2007)

Um comentário: