Arquivo pretensiosinho

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Jonas.

Pelas frestas da janela de madeira os raios de sol entravam e iluminavam alguns filetes paralelos no chão do quarto. A luz refletia-se para o resto do ambiente e fazia com que o último sonho da noite se dissolvesse lentamente, como que se misturando aos poucos à realidade da manhã. Jonas acordava em suaves solavancos, conforme a luz o obrigava a se revirar na cama. Nenhum despertador soava. Era domingo.

Ao acordar, o costume de Jonas era ficar logo sentado na cama, e espreguiçar-se com vigor. Para descer ao chão, o pé direito era sempre o primeiro, inaugurando assim, a série de pequenos rituais cotidianos, que iam tornando-se necessários como o ar. Antes mesmo de tocar os chinelos, Jonas tateava ligeiro e certeiro os óculos que sempre deixava no criado-mudo, ao lado da cama de casal. Óculos indicados para descanso e leitura, mas que Jonas fazia questão de usar durante todo o dia.
Apesar de tanto espaço sobrando em seu quarto, nenhuma companheira compartilhava de seu leito regularmente. E em dias de chuva, Jonas era sempre o responsável por abrir as janelas do quarto, pois que a empregada não entrava em seu quarto e nem o incomodava enquanto ele não desse algum sinal de que havia acordado.
E ocorria que cada dia tornava-se mais ritualístico que os anteriores. Tomar banho, por exemplo, significava ter cuidado especial com partes particularmente sensíveis à sujeira, como o vão dos dedos dos pés, os órgãos e atrás da orelha: algumas meias-horas depois e a tarefa era cumprida. O evento acontecia três vezes ao dia: pela manhã antes de qualquer coisa, à tarde após a sesta, e à noite antes de assistir a algum filme antigo de sua coleção.
A coisa chegou a tal ponto que uma boa desculpa para a caminhada dominical era o jornal de domingo, que Jonas buscava religiosamente na banca do Martins, a duas quadras de sua casa.
“- Em dias de chuva, o guarda-chuva; Em dias de sol, um boné, oras!” - dizia o falecido Dr. Sebastião, que vivo seria conhecido por precavido, e digo também - em razão de escrúpulos econômico-precatórios - pai ausente de Jonas.
O mineiro Martins lembrava um pouco o paulista Dr. Sebastião, pois, coincidentemente, tratava a Jonas como a um cliente. Jonas retribuía a atenção sendo fiel ao comércio do mineiro, e era demonstrando isso ao jornaleiro que suas conversas ultimamente viviam cheias de citações dos artigos publicados pelo pai, bem-sucedido advogado e jornalista (se é que é mesmo possível uma única pessoa exercer as duas funções), mas repetidos assim: de uma maneira ainda mais vazia que os originais.
Os hábitos alimentares também se refinavam criteriosamente. Nos últimos cafés da manhã, Jonas costumava tomar um suco de caixinha, variando os sabores entre laranja, uva, abacaxi, manga e pêssego. Cinco era um bom número. Algumas fatias de presunto e de queijo, geléia de amora, manteiga e requeijão combinavam-se aleatoriamente com as fatias de pão-de-forma, que Jonas às vezes pedia para torrar, às vezes não. Se comesse pão torrado, o suco era preferencialmente laranja ou manga. Se comesse pão normal, era bom mastigar também alguma fruta. Queijos eram bem-vindos.
Para a tarefa de servir a mesa, Jonas dispunha também da empregada, um ser mal pago para dar suporte e auxiliar nos caprichos do patrão. Ela ficava calada o tempo todo, e Jonas podia ouvir jazz antes do almoço, enquanto lia o jornal.
Um pouco de Ella Fitzgerald, My man, poderia influenciar e decidir definitivamente se Jonas começaria a ler o jornal pelo caderno Metrópole ou pelo Caderno 2. Algumas vezes tirava os olhos de cima das grandes e desengonçadas páginas do diário para colocá-los em algum canto da casa, de preferência um rodapé qualquer. Após a leitura, limpava os dedos em um guardanapo de pano, bordado com capricho, que sempre ficava na mesa de centro de sua sala, exatamente para que Jonas removesse a tinta das páginas que havia grudado em seus dedos.
Há alguns meses seu gato havia sumido e Jonas preferia sentar-se na poltrona e, deste modo, deixar o sofá maior para caso o bichano voltasse. O gato era Adamastor, e vivia arruaçando pelo condomínio, o que ia de encontro com a comodidade e privacidade dos vizinhos. Assim, havia aqueles que odiavam o bicho, e para Jonas não eram problema... Mas ele suspeitava mesmo era das últimas crianças que passaram as férias na casa da avó, uma viúva velha, vizinha sua. Elas adoravam o mascote, carregavam-no para cima e para baixo no colo e lhe fazendo carinhos. Jonas observava tudo de longe, da janela de seu quarto, e seus olhos retiravam toda a umidade da cena vista por trás do vidro muito limpo.
As pessoas pouco viam Jonas fora de sua casa, e sabiam que se tratava de um homem ocupado, porém respeitoso, já que não tinha cara de quem se ocupava de atividades desconfiáveis. Jonas correspondia esse respeito com um bocadinho de orgulho, que geralmente deixava estacionado na garagem de sua casa. Em domingo que fizesse um bom sol, ele mesmo lavava sua Mercedes, que conquistara, e isso é bom dizer, por mérito próprio.
“-Ainda há muito a conquistar.”
Algumas ideologias eram necessárias para sustentar a atuação de Jonas, e as suas opiniões cautelosas geralmente acabavam embalando e encantando alguma moça, que invariavelmente terminavam como presa em sua toca, chamada Lar. A Mercedes era apenas o meio de transporte mais seguro e confortável que havia para trazê-las à sua casa. Jonas era precavido, e evitava o envolvimento em se tratando do sexo oposto. Apenas um saudável relacionamento profissional entre ele e as mulheres.
Mas era o seu apreço por cachaças de produção limitada que o fazia ter alguma conversa mais profunda com as secretárias do escritório. Algumas gotas de prosa sobre o alambique também eram derramadas com o mineiro Martins, mas os dois jamais haviam bebido juntos. Jonas preferia a degustação solitária, em busca dos resultados mais primordiais da arte de produzir o elemento etílico...

Neste domingo, esta ordem de coisas levaria um sutil tropicão.
A luz refletia-se para o resto do quarto e fazia com que o último sonho da noite se dissolvesse lentamente, como que se misturando aos poucos à realidade da manhã. Jonas acordava em suaves solavancos, conforme a luz o obrigava a se revirar na cama. Nenhum despertador soava. Ao acordar em silêncio, mas com um zunido na cabeça, Jonas deu um pulo da cama, sentiu seu estômago revirar e não buscou os óculos, pisou primeiro com o pé esquerdo e não pensou em abrir as janelas, desceu até a sala esfregando os olhos e encontrou o gato Adamastor estripado em cima do sofá maior, banhado em sangue coagulado. Os olhos do bichano estavam abertos e amarelos, um amarelo que sempre combinou com sua pelagem alaranjada. Na poltrona havia um par de luvas sujas, um guardanapo de pano meio tingido de vermelho, uma faca limpa e uma lata de comida para gatos aberta, fedendo para as moscas. Jonas sentou-se, observou a cena mais alguns instantes, acariciou o pêlo do bicho com leveza, olhou para a janela demoradamente e lembrou-se de subir para abrir as janelas do quarto e tomar um banho.

(08/10/2008)

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