Dizem que as
ilhas são como os seres humanos. As penínsulas, então, seriam os membros, e as
enseadas, os troncos. Uma ilha ao redor de duas montanhas é uma moça que se
bronzeia estirada na areia. Uma ilha escarpada é um rapaz que se senta, agarra
as pernas e observa o balanço dos barcos e das moças. As ilhas têm epidermes –
mas feitas de areia – que dividem seu interior dos mares e do mundo. E o que
mais nos assemelha a ilhas são as grutas e as cachoeiras, a vegetação e as
rochas que preenchem nossos interiores. Muitos homens são perigosos, como o
capim de lâminas afiadas que dilaceram. Muitas crianças são plácidas e felizes
como as águas do rio, escolhendo e organizando o rumo que tomam pelas pedras, e
correndo e correndo. As veredas que os animais abrem pela paisagem são as veias,
pulsando.
Para que nossa
ilha seja mais humana que a metáfora, só lhe falta uma coisa: um povoado. E
numa das casinhas de tapera dessa ilha há um menino. E todos os homens,
mulheres, velhos e crianças, que moram nessa ilha são parentes desse menino. Um
é tio, outro é tio-avô, a avó fora enterrada logo ali, a prima mora duas casas
pra lá, os irmãos se multiplicam, a mãe
e o pai se entreolham, então passam o resto da noite sem se falar, porque tudo
que havia de dizer já foi dito. Enfim, nossa ilha é um ser humano, habitado por
um menino. E o menino e toda sua gente vive de pescar memórias, no mar e nos
rios. Eles vivem de pegar bichos com as mãos, vivem de beber água da montanha.
Mas nosso ser humano não seria uma ilha se não se sentisse, assim, isolado. E o
menino brincava com a maria-farinha enquanto caía a tarde, e o sol se apagava no
horizonte sem ondas, e o vento não uivava pra não acordar os macacos-prego, que
já andavam sonolentos nas copas. A maria-farinha era engraçada porque andava de
lado, e sua pinçazinha minúscula pinçava o ar como se ameaçasse chamar a mãe, maria-farona.
Mas o menino não sorria. Isolado na ilha, ele queria receber alguma visita
inesperada, queria que algum barco ancorasse ali perto e os marujos viessem lhe
contar histórias e elogiar o pirão delicioso que é especialidade de sua mãe. E o
sol já dormia e o menino também foi dormir, sem ouvir o vento uivar.
E para que
nosso menino seja um menino de verdade, ele precisa de um nome. Upaunã, era
assim que lhe chamavam seus parentes. E quando era pequeno, seu avô lhe sentava
em sua perna, balançava seu corpinho e dizia “Upa-upa! Unã”. Foi assim que ele
sonhou aquela noite. E sonhou também que, enquanto seu avô lhe fazia cócegas na
barriga, um menino mais velho veio correndo com a notícia de que um barco tinha
ancorado na enseada do tronco. E sonhou que foi quicando e estralando até a
enseada e, quando chegou lá, descobriu que não era um barco qualquer, era o
barco de um circo itinerante. E do barco maior foram içados elefantes,
malabaristas, cartomantes, palhaços, muitos palhaços e leões e trapezistas, e
gente de toda a cor, e cor de todo o tom, e tom de música e instrumento de todo
tamanho. Tinha até um elefante trompetista. E Upaunã adorou aquele movimento
todo, e quis ajudar os carregadores bigodudos, e como eles não o autorizaram,
ele se dispôs a autorizar a si mesmo a descarregar os veículos engraçados dos
palhaços narigudos. E passou a manhã do sonho entre os malabaristas, à tarde ouviu
histórias dos trapezistas, que tinham asas de gaivota, e à noite contou piadas de maria-farinha
aos palhaços, que se esborrachavam no chão de andar de lado e rir. E desfilou no lombo do
cavalo, e os treinadores de cavalo diziam “Upa-upa! Unã”. Mas para que o sonho
seja mais onírico, alguns bichos tinham que ser misturados. E o circo trouxe
elefões, leocacos, araricos, jumengueijos, focaletas, peixerontes, e revoadas
inteiras de abelhotas. Para Upaunã, até Noé teria invejado aquela fauna. E
sua ilha tinha virado a ilha mais bela de todas, cheia de gentes e bichos e
apetrechos coloridos e sonoros.
Então, Upaunã
acordou. E foi ver o mar antes do café da manhã. E viu que havia milhares de
barcos chegando a sua ilha. Mas não viu nenhuma cor. E não ouviu nenhum som interessante, só
o mar que arrebentava na praia de tanto em tanto, como se dissesse a ele que
corresse pra não ser atropelado pelas lanchas em alta velocidade. E, à medida que
os barcos se aproximavam, homens e mulheres desciam com malas pesadas, e das
malas armavam pequenas casas portáteis, embaixo das árvores, e cortavam os
galhos e espantavam os bichos, e jogavam um monte de cacarecos pela praia e
pelo mato. Em cinco minutos, a ilha tinha um cheiro diferente, e não havia mais
espaço pra correr pela praia, de tanta gente. E as pessoas não falavam com
Upaunã, só pra lhe pedir água e comida. Que ele vendesse, que elas pagariam.
Upaunã não conhecia o verbo vender, mas passou a conhecê-lo e a odiá-lo. E os
malabaristas e os trapezistas eram loucos, e sujavam as sombras das árvores, e os bichos
eram só cachorros que pareciam crianças e cachorros que pareciam mordomos, de todos os tamanhos e espécies, e defecavam pela areia. Upaunã tinha que andar com a cabeça baixa pra ver bem onde pisava. E, de
repente, a cozinha da casa de seus pais estava abarrotada de desconhecidos comprando e comprando, e
seu pai já não pescava mais peixe pra sua mãe fazer pirão, porque já não havia peixes pro pirão. E a água foi se
acabando, e as folhas das árvores foram caindo enquanto os homens bebiam em garrafas de
vidro. E o vidro também cortava os pés. E Upaunã tinha de abaixar a cabeça pra
andar. Tinha uma festa pra alguém, e nosso menino não sabia pra quem, porque já
não conhecia mais os habitantes de sua ilha, e nem eles mesmos se conheciam.
A ilha de
Upaunã, como uma criança quando fica doente, logo ardeu em febre. E o sol
demorava a se apagar no mar. E os ventos passaram a uivar sempre mais alto pra
acordar quem estivesse dormindo. E as chuvas chegaram e arrancaram os telhados.
E logo alguns domadores de cães se afogaram, e alguns trapezistas caíram de
seus cipós nas pedras das cachoeiras. E os palhaços morriam de medo do escuro e
já não podiam ver as marias-farinha, que choravam, ridículos. O sistema
imunológico da ilha, então, foi acionado. Ao cabo de alguns dias, restou
apenas a sujeira, porque os intrusos tinham ido embora. E Upaunã percebeu que
seu avô havia morrido, e também percebeu que seus parentes todos falavam
demais, como se quisessem ocultar nas palavras a vergonha dos pensamentos.
Falava-se muito, mas nenhuma história era contada. Era como se aquela visita
que Upaunã desejou tanto tivesse acabado com toda a memória de seu povo. Então
o sol se apagou no mar, e Upaunã brincou com a maria-farinha sob a luz da lua.
E gargalhou, e gargalhou, porque suas patinhas apressadas e suas pinças
pequeninas lhe sussurravam uma história que ele já não sabia qual era e nem como escutá-la, mas que lhe
dava cócegas na barriga.
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