Arquivo pretensiosinho

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Fluxo


É sexta-feira. Não que o dia da semana significasse algo de profundo - sequer superficial – para Olavo. Já há alguns meses sua folhinha com anúncios de material de construção recolhida de algum balcão de loja tinha tanta utilidade quanto os próprios anúncios. Olavo não precisava saber de lajes e treliças, não se importava com as datas. Para nós, ao contrário de Olavo, o dia da semana pode ser importante. Isso porque há dois dias, numa quarta-feira gorda (das mais obesas, porque feriado), ele passara o dia fazendo as malas.

Olavo, homem solitário, professor de Português, esteve desempregado e depressivo. Porém, de algum modo inconspícuo, ele encontrou determinação suficiente para arrumar suas coisas e partir. Naquela quarta-feira era feriado internacional, e Olavo, talvez ao se dar conta de que o mundo que não era o seu paralisava-se à maneira do seu, preferiu se manter aquém. Sacou a mala do bagageiro do guarda-roupa velho e começou a enchê-la desordenadamente com suas coisas.

Entre cochilar, fumar e dormir, Olavo levou três jornadas fazendo os preparativos. De suas roupas, poucas lhe agradavam. Os cintos e sapatos lhe faziam lembrar o emprego e a dignidade perdidos e Olavo também bebia. Os documentos, os livros, os porta-retratos e umas bugigangas ganhadas de presente, de tudo Olavo escolhia isto ou aquilo, sem algum critério e enfiava como podia em sua mala e numa mochila puída que estava guardada dentro dela. Na tarde de sexta lhe pareceu que a bagagem estava pronta, indiferente àquele sentimento dos viajantes que, ao partir, sempre acreditam ter deixado algo de valioso pra trás, sem saber bem o quê.

É outono e os dias ficam menores. Ao cair repentina a noite, Olavo fuma um cigarro enquanto se veste, equipa-se com as malas e sai. Não nos importa saber onde ele mora, nem pra onde ele vai e, ao que parece, para Olavo essas são também informações desnecessárias. Ele simplesmente sai e caminha na direção de um ponto de ônibus. Depois do ônibus, quem sabe não tome um trem, depois outro ônibus, estrada a pé, carona, carroça, lombo de animal, passagem de moto, barco ou canoa. Entre o portão de sua casa e o ponto, Olavo não murmura nada, não meneia a cabeça, não sorri, nem enruga a face, ele não repara no trânsito de carros que se atropelam na rua a seu lado. Sua única expressão, se é que podemos assim chamá-la, é de ocupação, principalmente quando levanta com as duas mãos a mala, que não passa de outra forma pelos degraus da calçada.

Um infinito ínfimo depois, ele está no ponto de ônibus. Muitos pedestres estão parados por ali, esperando o meio de transporte que os carregará a seus lares. Do modo como olha a seu redor, poderíamos até dizer que Olavo se identifica com algumas dessas pessoas. Mas é com certeza que afirmamos que alguns ali se colocaram na pele de Olavo. Ao vê-lo com as malas, Rogério sentiu inveja por não poder viajar ele também, Cleonice imaginou que o homem teria que pedir ao motorista que abrisse a porta dos fundos pra ele carregar as malas no ônibus sem incomodar os outros passageiros - principalmente ela, Tereza pensou em seu namorado, que foi passar uma temporada no Chile e sabe-se lá o que estava fazendo naquele momento, Ademir se lembrou de seu emprego recente, fez força pra não imaginar-se sacando uma arma e exigindo de Olavo que lhe entregasse as malas. Na enxurrada de veículos, Dona Fábia reconhece seu ônibus que se aproxima, e se agita, andando pra frente e pra trás, levantando o pescoço, esperando confirmar a vista.

Enquanto os passageiros sinalizam ao ônibus e o motorista dá a seta pra passar da pista do meio pra pista da direita, Olavo se comove. Em poucos segundos, o ex-professor está pálido, e começa a pisar o chão alternadamente, pé direito, pé esquerdo, ansioso. Gotas de suor frio começam a escorrer das entradas calvas na testa. As mãos também suam, e ele aperta uma com a outra, pra desvencilhá-las depois. O homem se agita, olha em torno, mas não se fixa em nada. Olavo está desesperado. Tereza poderia ajudá-lo, se não estivesse ocupada em atravessar na frente das outras pessoas que fazem menção de embarcar pra chegar logo em casa. Olavo não se sente bem, mas é sexta-feira e sua saúde é problema seu, e ninguém na multidão o percebe.

Olavo decide sair dali. Ele ajeita a mochila, pega sua mala pela alça, e começa imediatamente a arrastá-la apressadamente. O ímpeto do homem lhe impede de planejar a rota a seguir, e ele faz automaticamente o caminho de retorno pra sua casa. Ao contrário da vinda, a ida é uma longa viagem. Olavo nunca tinha reparado que o ponto de ônibus mais próximo de sua casa ficava tão longe. As calçadas irregulares parecem Andes a transpor com aquela mala pesada, os semáforos se assemelham a ampulhetas cuja areia está umedecida, as ruas mais largas, e os veículos como projéteis sugados por um vácuo do além. O peso não ajuda Olavo, e ele decide se desvencilhar da mala maior, deixando-a sob um abrigo de botijões de gás de uma empresa, que estava aberto por descuido. Olavo sua, se contorce, caminha como um louco, tromba na gente que passa, não sabe onde colocar as mãos. Não há nenhum bar entre o ponto de ônibus e a casa de Olavo.

Em geral, ao se depararem com um personagem masculino que passa por tantas agruras ao se deslocar do ponto a ao ponto b, leitores com um repertório tão específico como o nosso invariavelmente o comparam a Odisseu. No entanto, Olavo, em toda sua mediocridade, não se compara a nenhum herói. Anti-herói talvez fosse o termo que lhe coubesse melhor. Em todo caso, preferimos chamá-lo simplesmente “todos nós quando (não) somos nós mesmos”. Assim como as pessoas do ponto de ônibus, nós que observamos deste binóculo embaçado, reconhecemos em Olavo um pouco de nós. Pode ocorrer que a este ou àquele leitor ainda não tenha capitado, mas logo todos teremos algo em comum com Olavo.

Enfim, Olavo chega ao portão de sua casa, mas, ao se deparar com as barras de ferro e a fechadura que há pouco lhe serviram de prisão, ele para um segundo. Olavo não deve, não pode, não consegue entrar. Nem mesmo seu corpo agonizante lhe motiva a voltar àquela masmorra. Não importa o que aconteça, ele já atravessou esse portão pela última vez e não irá atravessá-lo novamente. Não. Um segundo passa, e Olavo abandona ali sua mochila. Ele já não pode mais se conter, então continua a correr um trote torto desengonçado rua acima. Em frente ao número 274, uma casa em construção, de muros altos e intolerantes, ele para, arranca a fivela do cinto, abre a braguilha, abaixa as calças - pra horror dos transeuntes. Não há tempo pra se agachar. Olavo respira ainda um átimo e caga uma bosta imunda, fedida, nojenta, viscosa, que lhe escorre pelos calcanhares até as raízes de árvore, que demolem por baixo a via pública. Alguns adolescentes a caminho de uma festa, ex-alunos de Olavo, gargalham nervosamente, escatológicos, desvairados.

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