Arquivo pretensiosinho

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Carona


O grande problema de se chegar carregado de bagagens é ter que aterrisá-las todas à porta pra procurar a maldita chave, sabe-se lá em qual bolso de qual mala que talvez nem esteja aqui. Na verdade, carregar-se de bagagens é já o problema fundamental. Não há santo que não prefira tomar um elevador a enfrentar uma escadaria de um ou dois lances tão fatais quanto breves, mas pressionar o botão “sobe” com a ponta do indicador é trabalho hercúleo, que um braço humano médio esforça a cumprir. E depois de quaisquer minutos de caminhada, de um trem a outro ônibus, resta ao viajante somente o tato compulsivo entre a sola do pé e da bota. A sensível falta de pensamentos agrava-se em cada passo com pesado estupor. Pra quem o vê chegar, trata-se somente de um mochileiro, crédulo demais da vida, figura facilmente impressionável, absorta em um mundo eternamente ensolarado. Entretanto, se não acha a porra da chave de jeito nenhum, o desespero é evidente.

A barba, depois de duas quartas-feiras, está obviamente descuidada, e escurece entre mês e outro, mas quando a conta está na casa de carnavais, qualquer balbucio ou praga é uma profecia. Se o creme de afeitar desliza de um bolso esquecido e cai no chão poeirento, não é lá grande coisa, mas a escova de dentes deveria, por razões de sua própria natureza, manter-se enrolada no papel-toalha, o que, nestas instâncias, jamais ocorre, e o sujeito contrariado deve resgatá-la do tapete de boas vindas. A ver-se completamente subjugado pela lei da gravidade, já não há pudor que impeça que as cuecas sujas se esparramem. Às vezes, o acaso caprichoso é um brilho meio fosco sob uma lembrancinha daquela praia de nudismo pretensamente deserta. O alívio se dá numa conversa tola entre as duas voltas completas à esquerda, e o rangido inevitável. Incrível como a preguiça ou a pressa podem substituir o polegar opositor por uma grosseira passada de perna. E aquele pé latejante enfim dá um passo a frente.

Os interruptores de luz costumam ficar no mesmo lugar de antes, como se nunca tivessem sido comprados na loja de design de interiores, nem escolhidos a dedo por aquela ex de gosto excelente que, por sinal, fora muito coerente em todas as suas escolhas. O que se ilumina, contudo, não faz nenhum sentido, pois que o sentido está mesmo em iluminar, pra que o dedo mindinho do pé esquerdo não encontre escassa função em doer absurdamente depois da quina da mesa topada. Via de regra, bagagens pesadas se abandonam aqui mesmo na entrada, e o que se cuida em levar ao quarto são as tralhas mais acessíveis, inúteis no banheiro, onde só se espera que haja água. O chuveiro pode ser a novidade de uma lembrança, e poder tirar a roupa-de-baixo antes de um banho com sabonete e tudo é, sem dúvida nenhuma, mais importante do que eliminar o cheiro desagradável de suor seco nas axilas.

Então, a toalha é o maior dos lances de sorte. Não que, depois de tanto tempo em que o ideal era revezar entre a camisa menos suja e a bermuda mais ou menos, seja necessário secar as costas ou o vão entre os dedos do pé. O mindinho, bendito, ainda que de sobreaviso, encontra o batente. Uma profecia se faz errada, porque o mundo não acaba de imediato. Havendo na mochila um desodorante, um pente, um alicate, a cama é ainda mais interessante. Os presentes das mães são lençóis que, com o tempo, acostumam-se à solidão, e desbotam, ora no pé da cama, ora mal estendidos no colchão. Engraçado como o conforto pode ser esquecido e ironicamente reestabelecido num estalar de dedos. Os interruptores espalhados por toda parte servem pra um fim muito limitado e, por fim, se o indivíduo preferir dormir de luz apagada, não servem de nada. A menos que uma rachadura no teto seja a única visita que lembrara do dia de seu retorno. Se assim for, o cochilo será um risco rajado, feito um raio cortando um céu ao contrário. O estômago é um trovão, e o costume é uma benção. Já dizia o avô, morto antes de mais nada, quem tem fome se deita cedo. A goteira ritmada lembra um acampamento insólito à margem da BR.

Cumpre dizer do viajante que nunca saíra de si. Ainda que, dormindo, costume sonhar-se paisagem inexplorada, o máximo de destacamento alcançado fora o dos fluídos deixados pelas raízes de vegetais estrategicamente posicionados pra cobertura das vergonhas. Ou o instante em que um pedaço de vidro ou uma poça refletira seu enorme nariz ou os pelos obscenos em seu ombro. Parece que nariz e pelos ficaram por esse mundão de água. O que ficara pra trás, no entanto, jamais seria suficiente pra que os sonhos não se repetissem novamente. E toda noite era aquilo: ao dormir cedo, deparava-se o homem com infinitas possibilidades, às quais obrigavam-se caronas. Queria ele viajar, enfiar tudo num saco de pano e sair sem rumo. Sua única liberdade é, porém, o esquecimento deliberado de onde estaria o molho de chaves e a invenção de uma estratégia mnemônica pra encontrá-lo somente depois do horário ter passado e não haver mais tempo agora.

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