Arquivo pretensiosinho

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Vida nova

Minha lava-roupas conta com cinco níveis de água, oito estágios de lavagem, tecla especial turbo, opção amaciante e o mais sensacional: programação de início do funcionamento. Na verdade, a lava-roupas não é minha, tenho que confessar. Mas na casa onde eu moro, essa lava-roupas é um sucesso. Ou melhor, a única alternativa. Como muitos a utilizam, a máquina funciona o tempo todo. Mas aguenta o tranco, disse Seo Chávez quando me alugou o quarto. Está na garantia. Você pode deixar a roupa dormir de molho e lavar logo cedo - Desde que não atrapalhe o uso dos outros moradores.

Tendo trabalhado e, no caminho de casa, decidido mudar de vida, eu, seu personagem amigo, à certa hora da noite coloquei minhas roupas na máquina, para começar a reviravolta decisiva do final de semana. E assim fazia, cheio de planos na cabeça, quando Seo Chávez chegou meio apressado. Foi passando pela área de serviço e entrando pela cozinha meio atordoado. Continuei meu afazer – Ah, você está aí! Pois é, Seo Chávez. Mas que olhos atônitos eram aqueles e rajados de vermelho? Bem, não me envolvo muito com Seo Chávez, procuro manter uma relação distante e saudável entre proprietário e inquilino, mas não se pode fugir à curiosidade. Que bicho morreu de curiosidade, mesmo? Não importa. O peixe morreu pela boca - Tudo bem, Seo Chávez?

Não me lembro da resposta. Mas antes de revirar os olhos atrás dessa memória, vejamos Seo Chávez: Branco de pele morena, traços arabescos, bigode e cabelos grisalhos, olhos escuros, barriguinha-de-chopp evidente. Pelo nome, espanhol, no mínimo hispano-hablante. O que também se infere pelo falar esquisito. Pois, ironicamente, Seo Chávez odeia ser confundido com espanhol - é português! portugaixi! Sofria para falar com sotaque de Lisboa. Há algum tempo, conheci um estrangeiro de Portugal, de uma cidade que faz fronteira com a Espanha, e o sujeito me parecia ter o mesmo problema, só que mais acentuado, já que era recém-chegado e nossa bela prosódia ainda não o tinha contaminado. Seo Chávez tinha mesmo uns cinco ou seis nomes, como todo bom português, mas já estava no Brasil havia décadas.

Não existe, de todo modo, maneira mais eficaz de se comprovar se uma pessoa é portuguesa ou não do que descobrir se ele ou ela é proprietário de vários imóveis numa mesma rua e vive da renda dos aluguéis. Seo Chávez está em outro patamar, já possui, dizem, doze pensões pelas redondezas. Aproveita-se da proximidade com a zona universitária. Então restou a dúvida: se o comércio de imóveis estava aquecido, se as pensões estavam cheias de estudantes em razão do calendário acadêmico, e se não tinha nada quebrado em casa, que eu soubesse, o que Seo Chávez faria ali, e atordoado daquele jeito?

Você vai lavar roupas a essa hora? Quase respondi: olha pra sua cara! Mas preferi: coloco na programação. Virei o rosto e ele ficou calado por um tempo - você viu o Maurício? Que Maurício?! Perguntava sobre alguém que eu não conhecia, e até onde eu sabia, não tinha nenhum Maurício morando na pensão. Suspirou meio ressentido, assentindo. Pensei que estivesse livre, que Seo Chávez iria embora depois daquilo. A presença dele tinha me desconcentrado e eu tinha digitado o horário errado. Teria que reiniciar o programa. Não recomecei, pois percebi que ele ainda estava por ali. Rondava pelos rodapés da cozinha e da área de serviço. Perguntei se iria consertar alguma coisa – E tem alguma coisa quebrada?! Rosnou.

Verifiquei se estava babando. Se estivesse, eu me trancaria imediatamente no quarto e chamaria o controle de zoonoses. Não sei se a prefeitura atenderia a um chamado àquela hora, não pude descobrir, pois percebi que não babava - Ainda, devo ter pensado. Não, não. Nada está quebrado. Sentou-se num degrau e enfiou a cabeça entre as pernas. Senti que estava livre para continuar minha tarefa. Nível cinco, nível oito, turbo, voilá. Bati em retirada para meu cômodo, onde tentaria ainda organizar qualquer coisa para sábado de manhã. Mas o homem agoniado esfregando as mãos no rosto me interrompeu – Você não vai ficar? O sotaque trêmulo clamava compaixão. Sujeito inconveniente, desrespeitara a hierarquia social mais básica: o inquilino não é obrigado contratualmente a ouvir o chororô do proprietário.

Penalizei-o com um sonoro NÃO e corri para minha toca. Passei a chave na porta e fiquei calado, tentando expressar minha necessidade de não ser incomodado. Pensei nas coisas todas e fiquei meio aborrecido. Estresse comum. Logo me distrai com a arrumação do armário. Cabides livres. Camisas. Camisetas. Blusas. Calças dobradas. Caixa de remédios no canto. E as gavetas? Abri-as e comecei. Quando passava para o compartimento de meias, tocou meu celular. Na tela do aparelho tinha um número desconhecido. Oras, não atendi. As pessoas deveriam entender que ninguém é obrigado a atender chamadas de números desconhecidos. Tocou de novo. Deveria ser engano ou algum conhecido querendo me levar para um bar. Afinal, era sexta-feira e outras pessoas além de mim pensavam em mudar de vida. Na vida de alguns, isso pode implicar fazer sexo, arranjar uma namorada ou encher a cara. Creio que tudo que se faz na medida certa não pode fazer mal.

Tocou de novo. Nessas horas quem é que não se arrepende de ter selecionado aquela musiquinha? Parou, e dessa vez o intervalo entre os toques foi mais curto. Rejeitei e coloquei no silencioso, mas de nada adiantou. O telefone berrou silenciosamente por não sei quanto tempo, até que o atendi - Alô?! Grunhi. Do outro lado, a respiração emudeceu. Já ia desligar quando ouvi – o-o Maurício? Não tem ninguém aqui com esse nome! E desliguei. Estressado ainda mais com a situação, levei algum tempo para entender que a pessoa também perguntara pelo tal de Maurício. Mas que Maurício?! Seria o mesmo ou só uma ironia? Se vocês estivessem lá, talvez me alertassem. Mas não estavam. E o telefone tocou novamente – Maurício? O-o Maurício? É por, gentileza?!

Veja só! Como se eu devesse alguma coisa para um gago! Liga para mim e quer saber de Maurício. Maurício é o caralho – Senhor, não tem ninguém aqui com esse nome, o celular é meu e eu não sou Maurício! Fim. Desliguei. Deveria me deixar em paz. Eu poderia retornar à minha gaveta. Ainda disse alguma coisa enquanto eu respondia, mas eu apertei o botão vermelho quase antes de terminar. Que coisa! Essa história de Maurício tinha me deixado ressabiado – quem é Maurício?! Fui pensando e arrumando. Algum amigo meu? Algum parente? Conhecido? Vai saber. O bom em se fazer algo automaticamente é que se pode deixar a mente em outras coisas. Pensei que, se quisesse mudar de vida, trabalhar com as mãos sem ajuda do cérebro seria um passo importante. Algo como um esvaziamento terapêutico. Enfim, deixo aqui o conselho.

Nada poderia me demover. Eu já havia dispensado Seo Chávez e o gago do telefone, agora era terminar os preparativos antes de dormir, pois o amanhã seria decisivo. Todo mundo sabe que uma boa noite de sono revigora o homem. Assim pensando, ajeitei alguns papéis na escrivaninha e liguei o rádio-portátil num volume bem baixinho - ...the answer my friend, is blowing in the wind, the answer is blowing in the wind... Fita é coisa antiga, mas o rádio também era antigo, e funcionava muito bem, obrigado. Acomodei-me na cama, sem apagar as luzes. Gostaria de voltar a meus planos antes de dormir. Estava sereno agora. E pouco a pouco os pensamentos viraram sonhos. E na superfície de meu cochilo, eu parecia interessado em apagar a luz.

De repente algo (e me desculpo por lhes corresponder as expectativas). Um arrepio. Um temor. Um impulso nervoso. Prostrei-me na cama. Sentado eu tentava entender o que era aquele gralhado - Maurício! Maurício! De novo não! A essa hora essa mulher vem fazer escândalo no portão. Não é de se admirar que os moradores da pensão nem se comovessem, ninguém se chamava Maurício, o Maurício que atendesse. Eu também não atenderia. O problema é que eu já me sentia responsável por responder pelo Maurício: Maurício?! Que Maurício? Não tem ninguém aqui chamado Maurício. Picada de pernilongo e mordida de curiosidade me dão coceira.

Levantei dum salto e me apressei até o portão. Nem reparei que Seo Chávez ainda estava na cozinha – Moça, não tem nenhum Maurício aqui. Ela me olhou de cima abaixo. Os olhos estatelados me lembraram Seo Chávez – Não?! Mas ele, ele... Meudeus! O Maurício deve ser fonoaudiólogo! Ela gaguejava e falava como se a boca estivesse cheia de farofa. A moça era bonita, meio descabelada e vestida de acordo com uma nova moda. Não sei bem descrever. Eu não entendia nada, mas agora queria saber. Lembrei-me de Seo Chávez e pedi a ela que aguardasse um instante – Isso! Chama ele, o-o Maurício! Não a corrigi. Fui até a cozinha e encontrei Seo Chávez sentado e os olhos fixos num papel. Suas pernas tremiam num tique nervoso – Seo Chávez! Olhou-me espantado. Tem uma moça lá no portão, ela está procurando o tal do Maurício – A pois!

Não parecia muito impressionado – Manda embora! Seu tom era estúpido, mas eu o interpretei como parte do discurso contratual que se havia perdido. Voltou-se para o papel enquanto eu o fitava por alguns instantes. Queria dizer que não conhecia Maurício nenhum e que não era minha obrigação ficar respondendo nada por ele, mas somente o fitei. Sua sobrancelha se sobressaltou sobre a folha branca e eu entendi aquilo como uma pergunta. Não costumo fazer comentários dessa maneira, mas lhes revelo aqui que Seo Chávez tem alguns trejeitos duvidosos, e meio sombrios. São quase imperceptíveis, mas eu observo bem os homens com quem faço negócio. Pois bem, fui dizer.

Chegando ao portão, não encontrei ninguém - Oras! Mais essa! Melhor assim. Ao retornar pelo corredor, ouvi um som distante de celular no meu quarto. Apressei-me para atender. Meus princípios de paz e sossego iam por água abaixo, mas eu só queria atender logo e mandar o sujeito procurar o Maurício na casa da mãe do caralho. Entrei no quarto correndo e larguei a porta aberta – A-alô! Maurício? Já ia esbravejar quando a moça de roupas mal-costuradas e Seo Chávez entraram no quarto sem perguntar. Fiquei confuso com a situação, não sabia com quem eu gritaria primeiro. Talvez tenha pensado rapidamente no meu mantra: “Sexta-feira. Mudar de vida”. Talvez só tenha dito qualquer coisa e desligado o celular – Mas o que é isso?! Seo Chá... Só sei que não terminei de dizer.

4 comentários:

  1. bom!!!

    anda lendo o "bestiário"? me lembrou "casa tomada", não sei porque.

    aproveito essa oportunidade para dizer: "chupa, cortázar!"

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  2. Tá... O que aconteceu e quem era o MAuricio??? FIquei curiosaaa

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  3. Rodrigão, nunca li essas coisas aí... hahaha... E Carol, "não terminei de dizer", o resto fica por sua conta, use a imaginação, olha que legal: a narrativa acabou, mas a história pode ter quantos finais você quiser... rsrsrsrs

    Falous, dois!!!

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  4. "narrativa acabou, mas a história pode ter quantos finais você quiser"

    Que didático! hehehe

    Boa! Gostei bastante

    ArrivederCi

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