Arquivo pretensiosinho

domingo, 26 de setembro de 2010

Crônica

Me aproximo da banca de jornais. Quero ler as capas dos periódicos e, quem sabe, levar algum livro de coleção sem necessariamente adquirir um diário. Verifico os nomes que me interessam, vejo fotos que não descrevem muita coisa, coloridos e layouts, não me prendo a nada. A este ponto, estou dentro da banca apertada e tenho que me desviar de um cliente no caminho de saída. Dá licença. Desculpe. Obrigado. Esbarro no mostruário de pocket-books e um senhor se levanta detrás do balcão, onde provavelmente estava sentado num banquinho. Ele observa ao redor, procurando entender o motivo do barulho, fixa o olhar no mostruário depois em mim. Desculpe. Sorrio desconfortável e, numa tentativa automática de recompensar o jornaleiro por tê-lo causado fadiga ou sabe-se lá o que Freud explica, ponho-me a girar o mostruário vertical, demonstrando interesse. Algumas edições são realmente interessantes, mas nada que mereça dez ou quinze reais do meu bolso. Sempre adotei a prática de adquirir bons livros em boas edições e desleixar com maus livros. Iria embora, se o senhor baixinho e bigodudo não continuasse a me observar de seu posto. Retiro um volume de José de Alencar da bainha do mostruário e confirmo o valor de dez reais etiquetado na contra-capa. Não havia mais nenhum cliente no local e eu esperava que aparecesse algum. Seria em boa hora, uma boa escusa pra bater em retirada silenciosamente. Às vezes, sinto que compartilho esse meu comportamento com algumas pessoas, digo, nos estabelecimentos. Não sei bem há quanto tempo desenvolvi a tática do cliente discreto, aquele que adentra as lojas, examina os produtos e sai despercebido pelos vendedores e sem ser incomodado. Uma ocasião, pude observar uma moça quase da minha idade que se movimentava mais ou menos como eu: mantendo hipotenusas de distância dos funcionários, no entanto, um rapaz beirando a adolescência e trajando um uniforme limpo e bem passado a abordou. Conversaram por alguns instantes e pude perceber em seus lábios que ela só estava olhando, mas, segundo minha hipótese, pressionada pelo olhar facínora do recém-contratado, momentos depois, avistei-a ao caixa, pagando por um abridor de garrafas multiuso que estava bem a sua mão no momento da abordagem do vendedor. Nunca mais vi a moça, não voltei àquela loja, mas refleti sobre a situação. Alguém como ela - ou seja, como eu – poderia aparecer agora e obrigar o jornaleiro a desviar sua atenção de mim. Ninguém. José de Alencar não é de todo mal. Vou em direção ao balcão, sacando minha carteira, conformado. As pupilas do senhor baixinho se dilatam nos olhos verdes e, ao ver aqueles óculos, aquele nariz e aquele bigode, imagino que estejam todos colados em uma máscara de Grouxo Marx. Sua mão esquerda está no balcão e a direita já se inquieta. Dez reais? Ele não responde, toma o livro, olha pro computador, usa um scanner no código de barras e diz “dez reais”. Observa minhas mãos e, quando entrego uma nota alta, meus ombros. Pego o troco e espero a sacola. Pronto. E o que mais? Meu time perdeu, a faixa de Gaza está um inferno, um bairro pobre sofre com falta de saneamento básico e eu tenho um livro pedante pra ler no metrô. Ah, gastei dez reais. Pego a sacola, agradeço e me viro pra calçada, de volta ao trajeto. Moço! Escuto a voz do jornaleiro sobre meus ombros. Moço, o senhor esqueceu do brinde – fez com o dedo apontando uma placa que, nem assim, faço questão de ler. Ah, o brinde. Com um sorriso entre solícito e amargurado, o baixinho marx se esgueira por trás de uma pilha de revistas, donde puxa um grosso catálogo de fotos. “Se quiser, pode levar uma revista de música, não tem nada a ver com a editora, a promoção é da banca mesmo, estava tudo empilhado, sobrando...” Fico com o catálogo e faço cara de poucos amigos. Se permanecer aqui por mais dois minutos, terei que conversar de fato, prestar atenção, essas coisas que eu ando evitando. Obrigado! Sou enérgico, na medida do possível, e dou um passo em direção à rua. “Por nada, moço, o senhor não quer preencher a cartela?” Cartela, que cartela? “Não, não, obrigado”. “Olha lá, vai que o senhor ganha”. Ganhar o quê? Acabei ficando curioso. “O quê?”. “A banca! É uma promoção da banca, quer dizer, quem ganha leva a banca”. Oras! O que eu faria com uma banca? “E o que eu faço com essa banca?”. “Sei lá, vende, administra, coloca em promoção. O que custa?” Enfim, volto contrariado, os argumentos eram bons apesar da promoção ser estranha, mas o problema é que acabamos de iniciar uma conversa, e tudo o que havia sido planejado tinha ruído.

Um comentário:

  1. Muitooo bom!!!! Que seja a primeira de muitas postagens!!! Já está nos meus favoritoooos!!!
    Ah me identifiquei com um dos personagens, não com vc que num quer papo, e sim com o vendedor que convence a levar o produto!!! rsrs
    Beijoooos

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