Arquivo pretensiosinho

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Só não abra a geladeira!

Eu o vi no alto da escada. Cara de sono. Roupas amassadas. Cabelo comprido meio rebelde. A barba enorme. Como um míope, apertou os olhos para distinguir minha silhueta. Fez um aceno com a mão. Desceu os degraus descalço. Fez que ia abrir o portão, mas me pediu para abri-lo. Estava sempre aberto. Dizia. Eu vinha lhe dizer algo. Apertei sua mão. Virou e subiu a escada de dois em dois degraus. Só porque suas longas pernas permitiam. Uma fita colorida no pulso esquerdo. Mesma mão que vira a maçaneta da quinta porta maltratada do único corredor de cortiço ajeitadinho. Entrou. Pode entrar. Fique a vontade. Quer água? Não tenho café. A cozinha era o primeiro cômodo. E o quarto, o último. Mas havia também um banheiro, que se tornou masculino, e uma lavanderia. E tudo se resumia a isso. Geladeira. Fogão. Pia. Televisão. Dvd. Computador amarelado. Guarda-roupas amarelo, gaveta quebrada. Cama amarela. Promoção nas Casas Bahia. Um de tudo. Duas cadeiras. Uma de plástico, uma amarela. Senta aí. Não falou nada. Acendeu um cigarro. Ofereceu o maço. O Isqueiro. Acompanhei por impulso. Não sei se agradava ou se tudo era só um ritual de hospitalidade, elevado ao nível máximo de automatismo. Senti o chão da pequena morada vibrar. Os ônibus. Esses ônibus que correm feito loucos na Eiras Garcia. Isso ainda vai dar merda. Dizia. Está vendo essa rachadura? Como eu não veria? Tem outra ali ao lado da cama. Quando chove também tem goteira aqui, olha. Com certeza. Velhas histórias. Mas parecia um lugar tranqüilo. Belo esconderijo, meu caro. Se passava muito bem por residência. Telefone. Internet. Caixa de fósforos conectada ao mundo. Preciso só mandar esse e-mail. Justificava. Eu ficava imaginando como começaria. Não havia como escolher primeiro a boa ou má notícia. Tem água? Engasguei. Na cozinha. Só não abra a geladeira! Quis perguntar. Na torneira da pia. Um galão de vinte litros jazia em cima do granito sem-vergonha. Alguns copos sujos. Outros semi-limpos. O de alumínio. Usa o de alumínio. É o mais seguro. Seguro? É. Não quis perguntar. As perguntas não ajudariam. Eu não poderia titubear. Enrolar mais para quê? Hora ou outra ele iria saber. Melhor que fosse da minha boca. Estou acabando. Tá bom. Ligou a tv. Não passava nada que prestasse, mas uma notícia de morte me chamou a atenção. Prestativo, ele voltou no canal e se virou novamente para a tela do computador mais lento que a vida. Talvez soubesse o motivo de minha visita. E não quisesse me encarar nos olhos. Para não me inquirir. Pelo chão, algumas latas de cerveja vazias. Cinzeiro. Olhou para mim novamente e aumentou o volume. Como está a Ju? Estava trabalhando demais. Bem. Acabei. Preciso de um banho, então te explico tudo. Sorte. Ganhei tempo. Iria contar tudo assim que saísse do banheiro. Calei. Ele cantou. Suspeitei que talvez não esperasse nada de mim. Não soubesse de nada ainda. Muita sorte. Eu não poderia vê-lo duvidar de mim. Não de mim. Mas não o julgaria por ter dúvidas, se assim fosse. Compreenderia se não quisesse mais me olhar na cara. Faria o possível para me defender, mas não o culparia se me cortasse a garganta. Silêncio. Cessou a cantoria, desligou o chuveiro. Pude ouvir tudo da frágil porta sanfonada de plástico. Me gelou a espinha. Saiu sério do banheiro. Procurando uma camisa. Não me olhou. Não tinha pressa. Tá com pressa? Não. Menti. Eu tinha muita pressa. Queria despejar tudo. Abrir a mala e despejar toda minha história sobre a cama. Se quiser mudar... Tá bom. Eu só dizia que estava bom. E não estava. Não estava de forma nenhuma. Caralho. Como começar? Você sabe que... Acha que vai fazer frio? Acho que sim. Talvez não fosse, mas eu sentia frio. E suava. Se arrumou num instante. Vai chover? Nunca se sabe. Preciso falar com meu pai. Com essa cara, seu pai é quem? Deus? Sorriu por um segundo. Por que não disse logo que sim, me abençoou e me deu seu perdão? Eu sei de tudo. Deveria dizer. Já estou indo. Você fica, não? Sim. Qualquer coisa, tem meu número. Usa o telefone. Tá bom. Volto em seis dias. Tá bom. Pegou os óculos escuros. Carteira. Chaves. Me deu uma cópia. Da porta, do portão. Tá bom. Da próxima vez eu deveria mudar. Dizer “certo” ou dizer tudo logo. Use a máquina de lavar. Tv. Computador. Dvd. Não tem gás. O banheiro não está lá essas coisas. Se quiser, traz gente aqui. A pia do banheiro não funciona. Tem o tanque e a cozinha. Usa a minha cama. Chama a Ju. Tem não sei o quê no armário. Só não abra a geladeira! Está desligada? Sim. Me olhou com uma cara que me fez parar por aqui. Talvez fosse só impressão. Tranca a porta, tá? Se chover, coloca um pano no chão. Se não for suficiente, põe um balde. Só não abra a geladeira! Por quê? Estremeci. Você não vai querer saber. Não abra, certo? Falou com paciência. Morri de curiosidade. Será que ele estava curioso também e queria me pagar na mesma moeda? O tom calmo de sua voz e o seu olhar perdido entre as rachaduras das paredes me faziam imaginar qual era o vazio que ele sentia. Será que, sozinho, ele também olhava para aquelas paredes dessa forma? Olha, está tudo certo, depois acertamos. Para onde você vai? Você sabe... Eu não sabia. Se eu não voltar em seis dias, mando um telegrama, ou ligo. Sei lá. Mas acha que vai demorar? Não sei bem. Você sabe. Por que ele insistia em dizer que eu sabia? Eu sabia. Sabia sim. Sabia de tudo. Olha, eu estou carregando esse peso comigo, preciso muito dizer que... Mas não foi assim que comecei. Não era o momento. E quando seria? Por telefone talvez. Telegrama. Fuga. Covardia. Eu não era um amigo de verdade. Não passava de um cão. Tombalixo safado. Covarde. Usaria seu esconderijo, deixaria o meu cheiro, mijaria em seu banheiro, lavaria minha bunda e não diria a verdade. Minha própria bunda. Enorme. Minha bunda e meu umbigo. Eixos de rotação do meu universozinho destrambelhado pelo magnetismo sazonal de meu pinto orgulhoso. Precisarei de companhia. Desculpe, amigo. Então está tudo certo, esquecemos de dizer alguma coisa? Ele sabia. Ele sabia. Desse momento em diante só o que me lembro é da certeza infantil de que ele sabia. Por que não ia logo embora? Só podia mesmo saber de tudo. Queria me torturar. Eu era um cão e ele um rato. Sujo. Imundo. Como poderia saber? Queria me testar. Me ver sofrer. Eu me remoia. Meus pés suavam e eu queria mesmo um chulé terrível para empestear embaixo da cama. Filho da puta. Eu vou usar tua máscara. Eu vou jogar teu jogo. Sorte ou azar. Azar. Ninguém ganha. Falou. Até mais. Até. Tranque a porta e não abra a geladeira! Tenho certeza que esse foi o convite. Ele queria que eu abrisse. O que teria naquela maldita geladeira? Um bilhete jocoso? Infame. Que segredo? Legumes assassinos? Sessão da tarde demais. Seria a caixa de pandora? Com todas as doenças do mundo. Mas o mundo já vai de mal a pior. Não poderia ser isso. Que segredo? Um bomba atômica? Drogas? Drogas? Eu iria ser preso por esse mané? Laranjas podres? Que podridão poderia se esconder em uma geladeira? Por que em uma geladeira? Só pode ser um cadáver. Vai começar a feder. Está desligada, né? Sim. Falou. Vai feder para caralho. Vai baixar polícia. Saiu. Tranquei a porta e fiquei parado, encostado nela. Respirei. Deveria correr agora. Correr a chamá-lo e contar toda a verdade. Olha, é que tenho uma coisa para dizer... Não foi assim que comecei. Não corri. Esperei. Esperei até ter certeza de que já estaria longe. Mijei. Caguei. Comi. Dormi. Fumei. Trepei. Esperei seis dias. Nenhum telegrama, nenhum telefonema. Não liguei. Acordei no sábado, com os movimentos ainda atordoados dos pesadelos. Poderia ter sido impressão minha, mas aquela geladeira fedia. Só podia ter alguém morto ali. Eu não tinha paz. Será que ele sofria da mesma forma ao saber que eu não abriria minha boca? Mas que inferno. Me peguei na cozinha. Admirando o eletrodoméstico misterioso. Velho. Enferrujado. Desbotado com o tempo. Devia gastar muita eletricidade. Algumas marcas de adesivos na superfície. Arrancados. Histórias de toda a sorte me passavam pela mente. Quantas cervejas? Quantas amantes abriram essa porta por um vinho? Quantas panelas de feijão e arroz já foram guardadas aqui? Por quantos verões o gelo foi necessário? Muitos. E havia alguém morto ali. Fedendo. Não me lembro bem, mas a porta já estava entreaberta. Acho que sim. Sou sonâmbulo, ou ele fez isso de propósito? Não era mais meu amigo. Quando aparecesse eu ia dizer. Dizer tudo na lata, sem muita sensibilidade. Não era mais meu amigo e merecia isso. Merecia sofrer. Merecia uns tapas na cara. Merecia a cadeia. Louco homicida. A gravidade entorno da geladeira velha me atraía. Eu tinha que abrir. Foda-se. Vou abrir essa merda e que se foda. Ele não vai saber mesmo. Campainha.

Ele me viu no alto da escada. Cara assustada. Roupas amassadas. Cabelo comprido meio rebelde. A barba por fazer. Como um míope, apertei os olhos para distinguir sua silhueta. Fiz um aceno com a mão. Tá aberto. É, eu sei. Não queria atrapalhar nada. Resolvi avisar. Pensei que você não vinha mais. E por quê não viria? Lembrei que deveria contar tudo. Agora era o momento. E aí, tudo certo? Certo.Você não abriu a geladeira, não? Filho da puta. Não. Vamos para dentro. Vamos acertar isso logo. Não apertamos as mãos. Concordei.

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