Arquivo pretensiosinho

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Lágrima.

Eu andava por aí naquele dia. Estava assim, ao acaso, em busca de algum sentido para estar andando. Só observando tudo ao meu redor. Pulava de calçada a outra, passava pelas faixas brancas pintadas para os pedestres. Às vezes, só por ter aparecido a oportunidade, lançava-me no asfalto negro e atravessava a rua correndo. Os carros buzinavam. Eu não tinha um guarda-chuva.
O dia estava nublado e os passantes cuidavam de não pisar em poças d’água, não poderiam molhar seus sapatos, mas pouco se importavam se os guarda-chuvas acertassem os outros guarda-chuvas ou os olhos de outros passantes. Nem olhavam para os outros passantes. Normal. E eu só andava.
Quando chove as pessoas ficam meio assim-assim. Eu, que estava em horário de almoço, tinha resolvido caminhar, não importava que chegasse atrasado, estava com tudo pronto, em dia. Meu lema é não dar pano para manga. E aquela chuva me recordava alguma coisa meio vaga.
Quando chove todos ficam mais introspectos, eu é que não quero parecer chato. É que mesmo vendo tudo acontecer por estas ruas sujas, faltava algo, sabe? Estava tudo bastante morno. Nada de novo. Era sempre a mesma cara, em cada rosto que eu não via, em cada corpo, em cada um que passava, nos cachorros, nas calçadas, nos prédios espelhados e enormes que não tocavam o céu, que nunca eram grandes o suficiente. E eu, e tudo, submetidos aos caprichos da chuva que caía rala e intensa. Via as mãos brancas, as escuras, as mãos com luvas, que carregavam guardas-chuva. Alguns conversavam, mas eu só conseguia perceber sua boca se mexer, e apenas isso, pois passavam por mim. Eram vultos, borrifos d’água. Não via os olhos.
Eu creio que andava perto do centro, na hora do almoço, ao contrário do caminho pelo qual se chega aos restaurantes baratos. Eu ia à direção oposta, alguns também o faziam, mas logo encontravam seu destino, os endereços que procuravam, os bons restaurantes, ou sei lá eu. Eu até tentava reparar mais em alguns passantes, mas eles não faziam nada demais, era só caminhar rápido com seu guarda-chuva, e entrar nas pequenas entradas de grandes edifícios comerciais, ou nas cantinas, ou em qualquer outro canto.
Dentro de mim não havia rumores, nenhum barulho, nenhum som, nada passava estridente pela minha cabeça, mas só um vazio. Não sei. Era pouco demais com o que se importar. Penso hoje, eu estava limitado, eu não sei, mas creio que fora aquela chuva. Eu andava por aí, e não contemplava nenhuma construção memorialista, nenhuma estátua, ou busto, nenhuma vitrine ou propaganda publicitária, não olhava para as placas que indicam os nomes das ruas, não sabia que ônibus eram aqueles que passavam. Eu apenas andava. E procurava saber o porquê de mais nada. Só tentava um lance de olhos para os rostos alheios, mas não fisgava nenhum olhar ou gesto.
Acho que andava meio cansado mesmo. Nem quente, nem frio, e eu não podia reclamar. Não por que havia escolhido que fosse daquela forma, mas por que já havia feito tudo que poderia, em tempos mais vermelhos e mais verdes, em horas mais sombrias e nas mais esclarecidas. Se fosse para escolher a melodia perfeita ou a poesia perfeita eu escolheria o silêncio inerte e a página em branco. Mas por falta de opção, já que nada do que havia por perto poderia expressar aquilo que eu não sentia. Que me vale continuar a andar? Só mais uma questão sem resposta. Eu andava a procurar respostas, mas sabia que não poderia...

...então olhei para uma vitrine que refletia um rosto que derramava uma lágrima e no instante da lágrima no momento exato em que caiu a lágrima eu vi refletido todo o evento na vitrine a lágrima escorria pelo rosto feminino de traços tão suaves aquela gota d’água descia insinuando-se pela pele morena da mulher continha todo o mundo e todos os rios do absurdo na lágrima prateada eu vi quando escorreu acompanhei todo o trajeto e parecia que quando caísse quando fosse lançada ao ar pela sinuosa curva do rosto que daria no pescoço moreno tudo aconteceria tudo estaria bem mais claro ou bem mais verde aquela lágrima ia juntar-se à composição amena da brisa da tarde de primavera e às poças do chão cheias de pássaros azuis e amarelos e surgiria um manancial no meio da calçada e as pessoas iriam sorrir e conversar umas com as outras e os vultos entre os borrifos iriam tornar-se formas claras e bem contrastadas e todos iriam se jogar em saltos ornamentais e barrigadas naquele lago de águas cristalinas e puras que se formaria faria sol sem jamais sem meio-dia fustigante e o rosto dela permanecia quieto calado sob os lábios grossos calados o nariz numa respiração decidida e contínua ameaçando um movimento que não ocorria e nenhum movimento do corpo e a vitrine me mostrava que os olhinhos se mexiam de um lado para outro em movimentos rápidos a garota não deveria estar procurando sapatos nem estaria como eu procurando o que nem sabia estava decidida piscou os olhos algumas vezes e eu não me mexia estava travado em minhas pernas ela ficou parada ali e sua lágrima carregava a dor mais profunda estática irreversível a dor abissal o sentimento enfim o que valia o mundo e a vida eu vi aquela lágrima pelo espelho a imobilidade era o eterno e não importavam sapatos nem vitrines era só um olhar perdido e fixo pelos ardis pensamentos um corpo enganado pelos sentimentos mais puros daquela pequena eu parado já não andava e nem respirava enfim estava ali parada o que eu procurava mas não sabia ainda o que era. Eu só sabia que havia encontrado...

Hoje eu sei, uma aproximação teria estragado todo o evento. A garota levou a mão ao rosto, talvez para enxugar a lágrima, partiu para dentro da loja, falou com o vendedor, tirou da bolsa alguns cartões, escolheu um. Apontou para um sapato. Agora com uma expressão de felicidade vazia. Pegou um pacote e saiu, andou um pouco sob a marquise da loja, abriu o guarda-chuva e perdeu-se na multidão. Talvez não fosse uma lágrima, talvez uma gota de chuva, esqueci-me do borrifo. Sem drama, sem final feliz. Resolvi voltar do horário de almoço.



(28/08/2007)

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