O grande
problema de se chegar carregado de bagagens é ter que aterrisá-las
todas à porta pra procurar a maldita chave, sabe-se lá em qual
bolso de qual mala que talvez nem esteja aqui. Na verdade,
carregar-se de bagagens é já o problema fundamental. Não há santo
que não prefira tomar um elevador a enfrentar uma escadaria de um ou
dois lances tão fatais quanto breves, mas pressionar o botão “sobe”
com a ponta do indicador é trabalho hercúleo, que um braço humano
médio esforça a cumprir. E depois de quaisquer minutos de
caminhada, de um trem a outro ônibus, resta ao viajante somente o
tato compulsivo entre a sola do pé e da bota. A sensível falta de
pensamentos agrava-se em cada passo com pesado estupor. Pra quem o vê
chegar, trata-se somente de um mochileiro, crédulo demais da vida,
figura facilmente impressionável, absorta em um mundo eternamente
ensolarado. Entretanto, se não acha a porra da chave de jeito
nenhum, o desespero é evidente.
A barba,
depois de duas quartas-feiras, está obviamente descuidada, e
escurece entre mês e outro, mas quando a conta está na casa de
carnavais, qualquer balbucio ou praga é uma profecia. Se o creme de
afeitar desliza de um bolso esquecido e cai no chão poeirento, não
é lá grande coisa, mas a escova de dentes deveria, por razões de
sua própria natureza, manter-se enrolada no papel-toalha, o que,
nestas instâncias, jamais ocorre, e o sujeito contrariado deve
resgatá-la do tapete de boas vindas. A ver-se completamente
subjugado pela lei da gravidade, já não há pudor que impeça que
as cuecas sujas se esparramem. Às vezes, o acaso caprichoso é um
brilho meio fosco sob uma lembrancinha daquela praia de nudismo
pretensamente deserta. O alívio se dá numa conversa tola entre as
duas voltas completas à esquerda, e o rangido inevitável. Incrível
como a preguiça ou a pressa podem substituir o polegar opositor por
uma grosseira passada de perna. E aquele pé latejante enfim dá um
passo a frente.
Os
interruptores de luz costumam ficar no mesmo lugar de antes, como se
nunca tivessem sido comprados na loja de design de interiores, nem
escolhidos a dedo por aquela ex de gosto excelente que, por sinal,
fora muito coerente em todas as suas escolhas. O que se ilumina,
contudo, não faz nenhum sentido, pois que o sentido está mesmo em
iluminar, pra que o dedo mindinho do pé esquerdo não encontre
escassa função em doer absurdamente depois da quina da mesa topada.
Via de regra, bagagens pesadas se abandonam aqui mesmo na entrada, e
o que se cuida em levar ao quarto são as tralhas mais acessíveis,
inúteis no banheiro, onde só se espera que haja água. O chuveiro
pode ser a novidade de uma lembrança, e poder tirar a roupa-de-baixo
antes de um banho com sabonete e tudo é, sem dúvida nenhuma, mais
importante do que eliminar o cheiro desagradável de suor seco nas
axilas.
Então,
a toalha é o maior dos lances de sorte. Não que, depois de tanto
tempo em que o ideal era revezar entre a camisa menos suja e a
bermuda mais ou menos, seja necessário secar as costas ou o vão
entre os dedos do pé. O mindinho, bendito, ainda que de sobreaviso,
encontra o batente. Uma profecia se faz errada, porque o mundo não
acaba de imediato. Havendo na mochila um desodorante, um pente, um
alicate, a cama é ainda mais interessante. Os presentes das mães
são lençóis que, com o tempo, acostumam-se à solidão, e
desbotam, ora no pé da cama, ora mal estendidos no colchão.
Engraçado como o conforto pode ser esquecido e ironicamente
reestabelecido num estalar de dedos. Os interruptores espalhados por
toda parte servem pra um fim muito limitado e, por fim, se o
indivíduo preferir dormir de luz apagada, não servem de nada. A
menos que uma rachadura no teto seja a única visita que lembrara do
dia de seu retorno. Se assim for, o cochilo será um risco rajado,
feito um raio cortando um céu ao contrário. O estômago é um
trovão, e o costume é uma benção. Já dizia o avô, morto antes
de mais nada, quem tem fome se deita cedo. A goteira ritmada lembra um acampamento insólito à margem da BR.
Cumpre
dizer do viajante que nunca saíra de si. Ainda que, dormindo,
costume sonhar-se paisagem inexplorada, o máximo de destacamento
alcançado fora o dos fluídos deixados pelas raízes de vegetais
estrategicamente posicionados pra cobertura das vergonhas. Ou o
instante em que um pedaço de vidro ou uma poça refletira seu enorme
nariz ou os pelos obscenos em seu ombro. Parece que nariz e pelos
ficaram por esse mundão de água. O que ficara pra trás, no
entanto, jamais seria suficiente pra que os sonhos não se repetissem
novamente. E toda noite era aquilo: ao dormir cedo, deparava-se o
homem com infinitas possibilidades, às quais obrigavam-se caronas.
Queria ele viajar, enfiar tudo num saco de pano e sair sem rumo. Sua
única liberdade é, porém, o esquecimento deliberado de onde
estaria o molho de chaves e a invenção de uma estratégia mnemônica
pra encontrá-lo somente depois do horário ter passado e não haver
mais tempo agora.
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