Os bons observadores reparam que, em comparação às outras profissões, o jornalista está invariavelmente fadado do fracasso profissional, seja por motivos óbvios de esgotamento natural, seja por motivos éticos que, neste caso, dividem-se em duas situações: a) o jornalista, experiente ou não, entrega-se à censura de seu editor e passa a reportar somente aquilo que interessa à opinião de uma instituição que se põe acima dos interesses da população; b) o jornalista, experiente ou não, mas ainda apaixonado, recusa-se veementemente a reportar somente aquilo que interessa ao editor e, dessa maneira, arruina a própria carreira, pois que nenhum meio de mídia terá prazer em assumir um profissional “indomável”, que busca a verdade por trás dos fatos. Neste último caso, o puritanismo ético também acaba encaminhando o jornalista à ruína por esgotamento natural.
O fato é que sabendo disso, e ainda assim tendo escolhido esta como minha profissão, acabei entrando em um dilema prático: garantir um honorário regular ou fazer um bom trabalho jornalístico. A saída foi procurar um meio alternativo que no final das contas funciona segundo a mesma lógica das mãos cegas dos grandes perdedores da história não escrita das mesas de poker. Uma cartada muito mais relacionada à esperança e ao materialismo no mais alto nível, um tudo ou nada inocente e, por fim, estúpido mesmo.
Nesse blind obscuro, os meios virtuais – leiam-se blogs - são os mais entre os menos garantidos, são a bengala curta que exige do passante cego certa habilidade em curvatura dorsal bastante desconfortável. Um instrumento singular e fastidioso. Em suma, qualquer notícia é notícia, e todas estão no mesmo nível, tanto a chegada de espaçonaves em uma cidade nos recônditos de Minas Gerais quanto um escândalo político a nível federal. É claro que os extraterrestres são muito mais numerosos e os blogs acabam viciados por pilhas e pilhas de descartes sensacionalistas na esperança de alguma bomba, algum furo inesquecível. Pra tanto, nunca é demais rezar pra São Benedito e deixar sempre uma mala pronta, pra qualquer situação de viagem urgente.
Foi o meu caso. Ao transitar pela rodoviária local, acabei farejando alguma notícia que talvez valesse muito a pena ser publicada. Alguns dos viajantes recém-chegados comentavam a respeito de um menino que seria capaz de prever o futuro de qualquer pessoa. Diziam que ele falava com a pessoa, ausentava-se por alguns minutos e depois retornava com um mapa completo, indicando todos os detalhes do amanhã daquele desconhecido. Diziam que várias pessoas já tinham se consultado com o menino e que, mesmo sabendo seus futuros, elas eram incapazes de alterar os fatos desagradáveis, pois que qualquer coisa que fizessem, terminariam irremediavelmente cumprindo a profecia do garoto. Alguns, mais fiéis, diziam que ele era um santo; outros, mais místicos, diziam que ele tinha algum pacto com forças malignas; os céticos prefiriam dizer que isso de prever o futuro não era coisa de se fazer, muito menos quando se acerta um grande número de 100% das vezes, pois que o futuro só pertenceria ao tempo.
Por volta das 15h de quarta-feira, após já ter conversado com muita gente e perceber que os relatos começavam a se repetir, eu já quase desistia de encontrar o caminho pro “Consultório”, como era chamado o barracão onde o menino atendia os curiosos. Ninguém até então tinha dado um endereço com precisão, apesar de não terem se negado de maneira nenhuma a falar dos feitos miraculosos do garoto. Parece que a omitir o endereço do Consultório fazia parte de uma espécie de acordo-consulta que o cliente-curioso-paciente-ou sei lá o quê deveria respeitar a cláusula de não divulgamento do endereço, talvez pra manter restritas as atividades do oráculo e evitar que multidões o venerassem, causando frenesi religioso e gerando inimigos desnecessários.
Enfim, já quase desistia da procura e pensava em procurar outra notícia quando um homem sentou-se a meu lado no balcão do bar da rodoviária e me perguntou se era eu o jornalista que andava perguntando pra todo mundo sobre o Orácro - era como ele chamava o garoto. Eu disse que sim sem muito interesse em ouvir mais uma história sobre a grandiosidade e milagrosidade do menino, mas ele respondeu sem que eu pudesse calcular que o endereço do Consultório era tal e tal e tal. Eu o encarei ainda surpreso e antes que pudesse fazer qualquer pergunta, ele me disse que aquela era sua missão, que era o preço que ele tinha que pagar. Tentei fazer alguma pergunta, mas inutilmente, o homem se virou e foi embora sem me deixar tempo pra pensar em alguma solução.
Neste momento meu faro jornalístico pressentiu que algo muito ruim estava pra acontecer, mas minha ingênua ambição profissional falou mais alto e dentro em pouco eu já me encontrava numa vila desurbanizada no interior de um bairro de interior de uma cidade de interior muito pobre. Perguntei a um homem que passava na carroça onde era o endereço e ele me apontou um rastro de fumaça que serpenteava detrás das copas das árvores no morro mais adiante. O Consultório ficava muito longe e eu calculava que ao chegar lá já seria o pôr-do-sol e eu não teria mais como voltar, mas mesmo assim, fui.
Quando estava a mais ou menos dez passos da entrada da chácara onde ficava o Consultório, um homem muito simples mas educado abriu a porteira do terreno e me saudou dizendo que o Orácro esperava o jornalista. Era assim que ele agendava as visitas: sem que elas soubessem com antecedência. O homem explicou que cada pessoa que se consultava com o menino tinha a incumbência de divulgar os feitos a uma outra pessoa e, somente em alguns casos específicos, indicar o endereço do Consultório. Disse também que não era comum que tantas pessoas comentassem sobre o Orácro e que todas elas teriam recebido em uma oportunidade ou outra a tarefa de falar sobre o assunto em data, local e horário específicos, pois sabia-se que eu estaria por ali e que blablablá, dessa maneira caótica eu teria sido encaminhado ao Consultório. Perguntei a ele se eu teria o mesmo interesse pelo Orácro se as pessoas não estivessem comentando, ou seja, se o próprio Orácro não tivesse delegado às missões a cada uma daquelas pessoas. Ele riu da minha pergunta com muita vivacidade, como se fosse a dúvida mais ridícula de todas, mas logo se conteve e me disse que eu estava ali, não estava?, que o futuro tinha se cumprido em presente e que o presente já era fato cumprido no passado. Eu é que deveria ter zombado daquela resposta.
Pois ao chegar à porta de compensado vermelho do barracão, o homem entrou na frente que me fez um gesto pra que eu entrasse, encerrando também nossa conversa, sempre de maneira muito educada. Uma cortina ao fundo e à esquerda se abriu e detrás dela saiu um moleque com idade entre nove e dez anos usando uma bermuda puída, uma camiseta regata meio rota e chinelos de dedo comuns. Aquele sujeitinho não se assemelhava em nada às minhas fantasias de oráculos de delfos, era só um menino comum que parecia estar brincando de bolas de gude com os primos no terreiro. Ao vê-lo, acabei me questionando mais uma vez se valeria a pena aceitar a proposta daquele jornal e me submeter a uma linha editorial de opinião institucionalizada, suicidar, enfim, minha carreira em troca de alguma pensão suficiente. Ele sorriu - faltavam-lhe dois dentes posteriores no maxilar – e me cumprimentou pelo nome.
Enquanto ele me encarava com aquele rostinho cruelmente angelical, eu tratei de esquecer meus conflitos filosóficos e comecei a procurar minha caneta e meu bloco de notas na minha bolsa. Ele esperava pacientemente. Nem bem saquei um lápis e a caderneta, ele começou a me explicar o funcionamento da consulta: “Aquele é meu pai, que cuida de mim. Ao terminarmos, ele vai levá-lo ao portão e vai dizer qual é sua missão. Todos os que passam por uma consulta recebem uma missão e, ainda que não a queiram cumprir exatamente de acordo com as instruções, a missão será cumprida. Eu vou responder a somente uma questão sobre você e outra sobre mim. A questão sobre você eu já sei a resposta, pois sabia de sua chegada e sonhei com o sonho que sonharei com a resposta pra questão que você vai fazer. A questão sobre mim é mais difícil de responder e precisarei de algum tempo pra sonhar”.
Eu tomava nota de tudo o que ele dizia e tentava também descrever o lugar e a situação em algumas palavras-chave. Nem bem tinha tempo de anotar uma palavra e ele já falava ou fazia algo que me remetia a outra e a outra, e dessa forma transcorremos uns quinze minutos de um monólogo em que fui um espectador intenso. Ele então me perguntou se eu gostaria de saber primeiro a resposta sobre mim ou sobre ele. Eu respondi maliciosamente que ele deveria saber disso também. Ele apenas sorriu e caminhou prum canto distante do barracão onde apanhou duas ou três bolinhas de gude olho-de-gato e começou a brincar com elas entre os dedos. Depois de um minuto de silêncio que me lembrou uma homenagem in memorian, disse com um ar extremamente arrogante pra um menino daquela idade: “31”. Então largou as bolinhas de vidro e voltou ao buraco de onde tinha saído. Eu sabia que aquela era a resposta pra minha pergunta, mas eu não sabia exatamente qual era a minha pergunta.
Toda a situação me fez ficar extremamente confuso. De alguma maneira aquela fala patética, 31, fazia sentido pra mim, mas ao mesmo tempo não passava de um número idiota completamente fora de qualquer contexto lógico. Era claro que aquele número se relacionava com alguma coisa, mas pra mim era impossível saber o quê. Depois de alguns instantes de uma infeliz batalha mental comigo mesmo, decidi que seria melhor deixar o barracão. Decidi também, num estampido moral, entregar-me ao editor carrasco que desejava me contratar, ou a qualquer editor que desejasse me contratar. Guardei meu lápis e minha caderneta na bolsa e mais que depressa tomei a porta de saída.
Era uma noite agradável, a lua cheia iluminava tudo ao redor e não foi difícil atravessar algumas hortas e armações de roseiras sem causar nenhum dano à vegetação. Ao chegar na porteira do terreno, encontrei o homem educado, pai do menino, que me disse que o bolso de minha bolsa estava aberto, que eu deveria fechá-lo ou meu bloco de notas iria cair pela estrada. Eu pedi desculpas pelo incoveniente e me ausentei, tomando o mesmo longo caminho que havia tomado na chegada.
Durante o caminho esqueci por alguns instantes do episódio e marchei automaticamente pensando somente em como todo o meu trabalho até então teria sido inútil, em como minhas utopias e indecisões convardes haviam me levado a trabalhar como um amador, cujo blog recebia não mais que dez visitas por semana, provavelmente de alguns conhecidos. Como eu poderia levar aquilo adiante e continuar a viver às custas da minha família, como um pretenso divulgador da verdade, um ideologista hipócrita e infantil. 31, 31. Ao chegar à parada do ônibus, onde iria cochilar esperando o próximo carro que sairia pouco antes da alvorada, percebi que na segunda linha de pensamento, aquela que automatiza conscientemente os movimentos, eu estava há muito tempo contando meus passos em 31. 31, 31. Maldição!
Depois de quase três anos do ocorrido, já empregado num jornal, sob o comando de um editor institucionalizado, resolvi consultar minhas notas daquela ocasião. As palavras-chave já não faziam tanto sentido, pois todas giravam em torno de números: cinco visitas, quinze testemunhos, dois moradores, uma decisão, oito sonhos, e assim por diante... Excetuando-se algumas passagens mais detalhadas porém irrelevantes, nenhuma anotação me dava o imput necessário pra lembrar do que havíamos conversado, ou melhor, do que ele havia conversado comigo naquele dia. Talvez efeito colateral da minha própria frustração, que teria me levado da memória os momentos decisivos daquele encontro. Então decidi tomar um café e apanhar os outros jornais locais pra ler as mesmas notícias de sempre. Não encontrei nada de novo - como se fosse realmente encontrar... Nada! Eu estava de fato fadado a figurar nas estatísticas da profissão e terminar arruinado eticamente pelo motivo “a”. Foi então que resolvi escrever a história de qualquer maneira, sem nenhum cuidado ético, nem revisão apurada, exatamente como achava de lembrá-la.
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